Há que saber esperar![1]
Aristela Barcellos de Andrades[2]
“Há ainda, o fato de que o analista precisa dividir
com outros o saber que esse ato lhe ensina,
do mesmo modo que necessitamos dividir com outros
a língua comum que manejamos, Nasio, 1988 (p. 12)[3].”
No ano de 2020, em pleno início da pandemia do coronavírus, e em meio a inúmeras incertezas tão reais que nos acometia, testemunhamos a um novo encontro que ocorria através dos grupos de estudos que datam desde 2007. Ressignificamos esse momento com a refundação desse Espaço nomeando-o de Salpêtrière Espaço Psicanalítico, expondo assim, aquilo que acreditávamos que fosse um Espaço.
Nossa ideia inicial e que ainda se configura está associada a um espaço, um lugar em que nossa responsabilidade e comprometimento discorram de nossa experiência em relação ao respeito a alma humana. Aqueles que nos procuram, vem em função de seu sofrimento, daquilo que em sua forma de amar no mundo não anda bem, então, buscam um espaço onde sua fala, seu discurso, seu sofrimento tenha vez, tenha lugar, tenha um devido Espaço com a devida importância de acolhimento e ressignificação para que se possa e para que se permita se escutar. Escutar a si mesmo, escutar a sua voz, a sua dor, onde poderá então dar um novo sentido, traçar um novo caminho, uma nova direção, mais forte e mais confiante de si mesmo.
E nós analistas, psicanalistas detentores dessa função da escuta, desse acolher, damos testemunho a essa trajetória do sujeito em relação a sua experiência. Testemunhar vem da expressão grega “martyria”, ou seja, alguém que é convocado para dar o relato do que viu em relação ao que está sendo julgado. Nesse caso, não somos convocados, somos convidados a escutar o que o outro tem a dizer, e consequentemente, nada está sendo julgado, a não ser o olhar de si mesmo daquele que fala. Nasio[4] traz no prefácio de seu livro que não há uma obrigatoriedade em tomar o paciente em análise, é necessário perceber se há desejo de tomá-lo em tratamento, e para isso, precisa-se de tempo, de tempo para dizer sim a esse processo. Da mesma forma, o autor reitera, a “função de esperar” (p. 14) que também serve para a ideia da instituição, não havendo motivo para se precipitar a tal empreitada.
Esse testemunhar é uma das funções do nosso Espaço, porém algumas pessoas já disseram que somos uma instituição, e isso é algo que sempre entramos em discussão, e que não concordamos com essa nomeação. Marini[5] em seu livro traz uma distinção feita por Michele e Eugène Enriquez sobre a diferença existente em relação as sociedades psicanalíticas. Uma delas são as instituições que estão fundadas em um saber, numa lei, no qual há uma obrigação educativa e uma interiorização de valores, como a igreja, por exemplo. Outras, são as “organizações de produção de bens e de serviços” em que cada um quer participar das atividades em comum e que são estruturadas em papéis, estatutos e funções ditas eficazes, o saber deixa de ser o centro e a produção e se torna esse algo, sem fidelidade, mas com elos em torno de uma ideia comum. Havendo ainda, as “organizações voluntárias”, que são os partidos ou sindicatos, ligados por um desejo compartilhado em realizar um trabalho, ter uma influência, uma ação mobilizadora e coletiva de solidariedade e fraternidade.
Acredito que o Espaço em que estamos nos reencontrando e reconstruindo está mais para uma reunião de todas essas ideias, e como qualquer encontro há afinidades e ideias que não se encontram e não se tornam afins. Oury[6] em seu livro se questiona: o que se passa? O que acontece nos encontros da vida, na “sombra das coisas” (p. 194), nos bastidores da sala de espera onde aqueles que fazem parte de um espaço se encontram? O que ocorre nessas relações que fazem parte das ordens simbólicas, imaginárias e reais? O que as torna eficazes e justas? O que faz semblante à construção de um espaço de trabalho?
Todavia, isso vai para além dessas ordens que se encontram no sujeito do inconsciente versus ego, no coletivo é necessário questionar aquilo que não é manifesto do sujeito do inconsciente, pois sabemos que aquilo que está no imaginário, no egoicamente costuma fazer parte dessas relações institucionais. Esse autor traz a seguinte frase: “… uma das funções do Coletivo é a de levar em conta o semblante. Se não conseguirmos resolver este problema – ou pelo menos explicitá-lo, articulá-lo – seremos sempre ultrapassados pelos acontecimentos e pela empresa tecnocrática” (p. 195), ou seja, seremos sempre atingidos pela rigidez que acometem algumas instituições, pela governabilidade funcional, por exemplo, além de algo da ordem pessoal, que mais comumente ocorre, e consequentemente levando a rupturas.
Mas como juntar todas essas ideias e construir o nosso Espaço? A ideia inicial era se tornar uma instituição, com regras, leis definidas, com a interiorização de uma fidelidade, com a ideia de transmissão obrigatória aos participantes, com suas construções e aprendizagens, com tudo aquilo que para se tornar um psicanalista é necessário, cada um buscando e se comprometendo em suas devidas funções. Porém isso não ocorreu, promessas e seduções de trabalhos foram feitas e não cumpridas. Frustações recaíram sobre o momento que não é de hoje, expectativas frente ao outro, frente ao semelhante caíram por terra. O que nos faz pensar que pelo fato de ser ou tentar tornar-se psicanalista seria algo que não estivesse fadado a frustração, palavrinha essa que parece fazer parte do cotidiano.
Vamos pensar em outra coisa então, vamos deixar de lado um pouco essas regras, vamos nos abrir mais, vamos circular em outras instituições, vamos ver o que está sendo feito lá fora e trazer para dentro do Espaço e pensar sobre. Então, havia sido membro de algumas instituições, saí delas, circulei por vários meios institucionais, e continuava comprometida com o que tínhamos em nosso Espaço, como também, nesses outros lugares em que fiz parte. Tínhamos grupos de estudos, os quais não eram cobrados financeiramente, mas sim, com a participação, com o engajamento de cada um, havendo queixas dos mesmos. Em uma outra tentativa se cobrou a produção de um texto como pagamento dos grupos, mas também, houveram queixas de que “teria sido melhor pagar do que escrever” ou perguntas do tipo: “tem que escrever mesmo?”, aconteceram entre tantas outras, pessoas que tentaram fazer desses encontros de estudos, o seu happy hour do dia. Mais tarde, resolvi tentar tirar um certo tempo sabático pois me encontrava cansada, exausta de tanto trabalho, dedicação e estudo, saí de outras instituições e pensei, está na hora de me dedicar somente ao Espaço, mas o que é esse Espaço?
Hoje passado algum tempo frente a várias tentativas em constantemente estar revendo meu lugar e o que tudo isso representa na minha vida, fico pensando no que falta àqueles que não se comprometem. Psicanalisar não é atender psicologicamente, os princípios que fundam ambas são diferentes e excludentes, ser chamado de psicanalista é distinto de psicólogo. Nesses dias estava lendo um livro e me deparei com o óbvio, que nem sempre é óbvio, logo pensei, precisamos falar sobre o óbvio e também sobre o desejo do analista, pois vejo sempre ser dito, que para se tornar um psicanalista é necessário o básico: análise pessoal, supervisão ou análise de controle e estudos. Além disso, o sujeito deve se autorizar por si mesmo e por alguns outros, o que, na verdade, a maioria das pessoas esquecem, mas o que é óbvio é o desejo do analista ou a falta do mesmo. E, novamente aquela pergunta bate à porta: O que faz do sujeito um analista? Ou melhor um psicanalista?
Onde se coloca o narcisismo do analista? A transferência nos coloca em interações conflituosas frente a esse narcisismo. Que saber é esse o do sujeito? Quando estamos numa instituição primeiramente procuramos por um mestre que nos mostre o caminho a se seguir, uma referência no qual podemos nos espelhar, projetar, todavia, não permanecer ali presos a essa imagem idealizada. Essa imagem precisa cair, é necessário lidar com essa morte, com esse luto, e fazer os lugares e consequentemente, as funções, circularem nesse ambiente.
Mannoni[7] cita que em 1952, R. P. Knight faz uma crítica as instituições e posteriormente Lacan retoma essa mesma questão em relação a formação do analista e em que concordo, ele fala sobre “os danos ocasionados por um saber pré-dirigido, mesmo que ele resuma os dados da experiência analítica” (p. 16)[8] mostrando com isso o desinteresse pela leitura e estudo, como também, pela pesquisa em psicanálise, além da rigidez estabelecida em algumas instituições. A cada ano que passa, esse desinvestimento me parece mais atenuante e assustador consequentemente. Lidamos com o sofrimento do sujeito e com o passar do tempo as pessoas se preparam menos para esse labor da escuta do outro, imagina da escuta de si mesmo! Quando o analista não se questiona sobre seu trabalho e sua função o que podemos ter disso? Como o analista não vai se a ver com aquilo que lhe cerca e com a sua função e não proporcionar um espaço de criação para a fala do sujeito, ou seja, aquilo que é seu está no seu devido lugar?
Nasio, traz no mesmo livro, que para haver uma instituição é necessário o comprometimento em formar analistas e fazer avançar a psicanálise, sendo isso indispensável a todo futuro psicanalista que trabalha com a escuta do sujeito. Mas também, é extremamente importante saber se se está em condições de fazer parte, de participar de uma instituição, pois não se trata de garantias como se percebe inúmeras pessoas papagaiando frases prontas, fazendo cursos de como ler Freud, por exemplo, como se isso fosse simples assim, e colocar em sua descrição que faz parte de tal instituição. Há pessoas que se dizem ser a própria instituição e há grupos que se dizem o mesmo. O que as diferencia?
Aqui, somos um grupo clínico que realiza, seminários, grupos de estudos, escuta clínica, supervisão, trabalhos culturais, como os saraus, projetos de trabalho com colegas de outras áreas, temos comprometimento e ética no que fazemos, tentamos seguir nossos mestres e questioná-los também, repensar o que ocorre hoje na sociedade e como a psicanálise lida com isso tudo. Acredito que quem participa conosco, está em formação psicanalítica, da mesma forma, que nós ao fazer a transmissão. Da mesma forma, que também estamos em análise, também participamos de estudos em algumas instituições, e também, fazemos supervisões. Estamos em constante formação. Mas as palavras de Nasio me deram um fôlego, quando li “há que saber esperar” (p. 12), pois me cobro muito sobre não sermos uma instituição, mesmo tendo um estatuto registrado, mas isso precisa se acomodar dentro do grupo em questão, é necessário cada um entender isso, cada um ao seu tempo, sem atravancar o tempo do outro, e ao mesmo tempo, olhar e fazer valer esse processo, não esperando que o mesmo ocorra sem trabalho ou sem fazer por onde. Não sei se temos um objetivo formal muito grande, já os tive inúmeras vezes, idealizava um lugar, uma forma de fazer isso que eu pensava se tornar realidade, mas hoje, penso em ir com calma, esperando enquanto trabalho e percebendo como isso se dá dentro de mim, dentro do Espaço, e na comunidade psicanalítica. Já mudamos inúmeras vezes a forma de ver e trabalhar, trabalho esse dos grupos e juntamente àqueles que nos procuram. Não temos tradição estabelecida como tantas outras instituições, mas todas começaram do começo, redundante não? Todas iniciaram do zero, com seus tombos, caindo e levantando e tendo um significante-mestre que as guiavam em um objetivo comum e que chamamos de Psicanálise. Agora, ou melhor já há algum tempo, estamos construindo o do Salpêtrière Espaço Psicanalítico que nos une dentro de nossas diferenças e nos faz trabalhar, laborar por um bem comum, o nosso Espaço.
Grata!
[1] Trabalho apresentado no Grupo de estudos – Encontros de formação em psicanálise, pela psicanalista Aristela Barcellos de Andrades, no dia 28/10/2024.
[2] Psicanalista e Membro Fundadora do Salpêtrière Espaço Psicanalítico.
[3] NASIO, Juan David. A criança magnífica da psicanálise – o conceito de sujeito e objeto na teoria de Jacques Lacan. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1988.
[4] Idem.
[5] MARINI, Marcele. Lacan – a trajetória de seu ensino. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
[6] OURY, Jean. O Coletivo. São Paulo: Editora Hucitec, 2009.
[7] MANNONI, Maud. Da paixão do ser à “loucura” do saber – Freud, os anglo-saxões e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989.
[8] Idem.