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Revista Cotidianos – Texto 4: Mulheres na Psicanálise – O recalcamento sobre a vida e a obra de Sabina Spielrien

Mulheres na Psicanálise – O recalcamento sobre a vida e a obra de Sabina Spielrein

Aristela Barcellos de Andrades, Psicóloga, Psicanalista e Membro Fundadora do Salpêtrière Espaço Psicanalítico

Nesse nosso novo projeto: Encontro e discussões em psicanálise: Qual o impacto das mulheres na psicanálise? Teremos um momento, um encontro aonde queremos propiciar um ruido, quiçá um barulho, um estrondo através de um trabalho de discussão clínica, teórica e, principalmente, um espaço onde a palavra de cada um (a) tenha seu lugar e sua importância. A nossa ideia é poder trazer aqui junto a vocês nomes conhecidos, outros nem tanto, de mulheres que estiveram na psicanálise desde seus primórdios, mas que não foram lembradas e, principalmente, reconhecidas em sua devida importância. Muitas pessoas nem sabem que essas psicanalistas existiram, da mesma forma, não sabem de seus fazeres na comunidade psicanalítica e na cultura vigente da época. Dessa maneira, daremos início a esse projeto e convidamos a todos para conhecerem e buscarem junto conosco as nossas ancestrais psicanalistas.

É conhecido frente a psicanálise que a mesma começou com uma mulher, quando na década de 1890 Emmy von N pediu a Freud que o mesmo se calasse pois ela queria falar, e ele, deixou que as lembranças dela tomassem lugar livremente, surgindo assim, a talking cure, a cura pela fala. Porém, essa mulher que toma a palavra, que pede licença a técnica da hipnose ao seu médico para que o seu sofrimento viesse à tona, para que ela o expressasse através da fala é tida como doente, pertencente a uma estrutura psíquica chamada Histeria, que até hoje é desprezada e muitas vezes ironizada em hospitais e em qualquer lugar que se preze. Quem nunca ouviu alguém dizendo: – Aquela mulher tem H – Agazão, ou seja, é uma histérica e provavelmente está fingindo ou fazendo uma cena, um teatro para chamar atenção.

Sendo assim, hoje trarei aqui em minha escrita a história e a contribuição de Sabina Nikolayena Spielrein, uma mulher russa, filha de mercadores judeus, pai comerciante de grãos e mãe dentista, nascida em 1885 em Rostov na Rússia e morta em 1942 durante a 2ª Guerra Mundial, fuzilada pelos nazistas, na mesma cidade. A história de Sabina é repleta de surpresas, todavia, o que nos é mostrado, principalmente nos últimos anos, é como se ela fosse somente uma “jovem ingênua, mimada e doente” [1]. Sabina encontrou a psicanálise durante sua internação no Instituto Burghölzli, hoje conhecido como a Clínica Psiquiátrica da Universidade de Zurique na Suíça, fundada em 1870 e na época dirigida pelo entusiasta da psicanálise Eugene Bleuler. Teve como seu médico responsável Carl Gustav Jung com 29 anos de idade, 10 anos mais velho que ela na época.

A história de Sabina vem sendo retratada em alguns filmes, após ter sido encontrada em Genebra uma maleta com cartas da psicanalista russa e seus vários interlocutores. Porém, a história narrada nesses filmes ocorre de forma injusta e até apelativa frente a enorme contribuição que ela fez junto a Psicanálise, e da mesma forma, juntamente a medicina e as artes. Um dos últimos filmes em que a história dela é protagonizada é Um método perigoso de 2011 em que mostra a relação amorosa entre ela e Jung, como também, o rompimento entre este e Sigmund Freud. Ali ela é retratada como uma personagem muito adoecida, com sintomas sadomasoquistas exuberantes relacionados a conduta nada ética de Jung. As cenas de espancamento de Jung com Sabina seminua, mostrando uma considerável fragilidade e instabilidade dela não estão registradas em lugar algum, segundo seus pesquisadores. E de forma “estranha” o diretor dá um certo e considerável prestígio a Jung no final do filme, chamando-o de o melhor psicólogo do mundo. O melhor psicólogo, é bastante questionável, mas é fato, ele não era psicanalista. Jung e Freud, ao longo do tempo, tiveram várias divergências teóricas, Jung tentou mudar alguns caminhos da psicanálise, sendo esse um dos motivos do rompimento com Freud. Ele também tentou se colocar no mesmo lugar de seu mestre, e relatou mentiras e omitiu fatos a Freud em relação ao próprio caso de Sabina, da mesma forma, sabe-se de seus inúmeros casos e relacionamentos sexuais com suas pacientes; sua técnica é a Psicologia Analítica e não a Psicanálise.

Mas voltemos então a Spielrien, que é de fato o que viemos falar aqui, após o tratamento com Jung e a alta hospitalar, Sabina se forma em Medicina e se torna membro da Sociedade de Psicanálise de Viena, sendo ela a segunda mulher a conquistar essa posição. Ela foi a primeira psicanalista a escrever uma tese em uma universidade e a segunda mulher a ter uma publicação no Anuário de Psicanálise, sendo a primeira a pediatra Margarete Hilferding em abril de 1910. Richebächer, cita:

A maioria dos psicanalistas do grupo formado em torno de Freud em Viena vem de famílias judias; mas são as mulheres – ao contrário de seus colegas homens – que representam o caráter internacional do movimento. São poucas as nascidas em Viena: elas vêm da Rússia e da Polônia, da Galícia, da Hungria e da Boêmia. As mulheres, muitas delas judias, têm que seguir seu caminho de formação solitárias. (p. 178) [2].

Sabina foi pioneira em sua trajetória, teve uma clínica inovadora, foi escritora, professora de música entre os anos de 1910 e 1931, teve 30 artigos publicados, sendo um exemplo a ser seguido. Em 1911 publicou sua tese “Sobre o conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia” sendo ela a primeira pessoa a utilizar a palavra esquizofrenia, bem mesmo antes do próprio Bleuler que foi quem a conceituou. Em 1912, publica “A destituição como causa do devir” em que ela trabalhou a questão da pulsão de morte precedendo Freud em Além do princípio do prazer; no ano seguinte em 1913 nos traz “Contribuições para o conhecimento da psique infantil”, este sendo o primeiro artigo sobre a infância após o Pequeno Hans de Freud e a Pequena Anna de Jung e, antes mesmo de Lou Andreas-Salomé, de Anna Freud e de Melanie Klein. Ela foi a primeira psicanalista a trabalhar e articular uma tentativa de relacionar a linguagem e a teoria das pulsões, trabalhando a questão linguística, além de pesquisar sobre a linguagem infantil e a formação de símbolos nas crianças. Quando volta a Rússia após a sua formação ela cria uma instituição para o desenvolvimento das crianças, diferentemente da maneira de como ela saiu na época do Czar Nicolau II, em que as mulheres não podiam estudar, sendo a partir de questões como esta é que Sabina começa a apresentar vários sintomas e foi levada a Zurique. Ela retorna a Rússia com uma profissão bem estabelecida e sem sintomas que a haviam levado de sua terra natal.

Ela passou por manicômios sempre sendo diagnosticada como psicótica, até mesmo, quando ela chega em Burghölzli, Rudolf Bion redige o relatório sobre ela sem mesmo tê-la visto, qualificando-a como psicótica e posteriormente Jung a chama de histérica psicótica. A internação de Sabina durou menos de 1 ano, foi de setembro de 1904 a junho de 1905. Após isso tornou-se médica em Zurique, onde as portas da Universidade foram abertas para as mulheres em 1864, diferentemente da Rússia que foi somente em 1917 após a Revolução Russa. Mesmo ela ter se graduado, mesmo ela tendo ideias inovadoras, tanto Freud quando Jung tiveram dificuldade em reconhecer a originalidade de Spielrein. E foi com Piaget e Vygostsky que além de sua imensa colaboração, ela é reconhecida de forma extremamente significativa, e escreve A origem das palavras infantis ‘mamãe’ e ‘papai’ em 1923, um dos destaques nessa área. Nesse mesmo ano em que ela volta para Rússia, além da instituição infantil ela também trabalha no Instituto Estatal de Psicanálise, dirige a Policlínica Psicanalítica e um Ambulatório Infantil, além do Seminário de Análise Infantil que era muito disputado pelos os interessados nessa temática. Em 1930 após a ascensão de Stalin a psicanálise é proibida, em 1936 ela perde o esposo Pavel Scheftel, casada desde 1913, e logo depois, também perde o seu pai e seus 3 irmãos e em 1942 perdeu a vida junto as suas 2 filhas.

Seguindo o desenrolar sobre a vida de Sabina e se prestarmos atenção, podemos e devemos nos perguntar, por que a história das mulheres é sempre excluída? Que forças são essas que fazem com que a obra de muitas mulheres seja soterrada [3], que suas histórias sejam desqualificadas, maltratadas e esquecidas? Como cogitar que uma mulher com tamanha bagagem de vida não tenha importância, que não seja reconhecida e devidamente respeitada?

Sabina nomeou o seu amor por Jung como “poesie”, porém sofreu consequências significativas por amar, por se expressar da forma que queria e conseguia, no mínimo, recebeu o não reconhecimento. Em uma carta a Freud de 10 de junho de 1909 ela escreve:

Eu não sou de maneira alguma inimiga do Doutor Jung: Caso contrário o quadro que ele me deu de presente não estaria pendurado na parede de minha casa sobre o piano. Para mim, ele é como meu filho mais velho, no qual investi muita energia e que agora pode ser independente: Se falo sobre ele com o senhor é porque o senhor o ama. […] Meu desejo mais ardente é me separar amorosamente dele. Sou suficientemente analítica, conheço-me o suficiente e sei que para mim o melhor seria um romance à distância (Richebächer, 2012, p. 150).[4]

A presença de Spielrein na vida desses homens foi tão devastadora que como resposta lhe foi proporcionado quase que um aniquilamento psíquico se não pior. Aproveitar-se do momento de sofrimento da analisante é no mínimo uma falta de ética extremamente perversa. Porém, isso a acometeu e ela em resposta construiu uma vida repleta de realizações e contribuições ao mundo e a si. Se ela amou de fato seu esposo como amou Jung, só ela poderia nos dizer, mas sabemos, pois ela deixou registrado que a melhor maneira de amar o seu algoz foi à distância.

Dessa forma, encerro esse breve ensaio trazendo uma citação precisa de Cromberg (2014) sobre a vida esplendorosa como uma MULHER, que teve e foi Sabina Spielrein:

 Há três interpretações errôneas da vida e obra de Sabina Spielrein: o seu diagnóstico como psicótica, o seu diagnóstico de masoquista incurável que cavou a própria tumba de seu esquecimento e a ênfase no período em que foi amante de Jung como se fosse a única notoriedade que teve. Uma mulher que no início do século XX concordou em ser o caso padrão de psicanálise na Clínica Burghölzli, frequentou a Universidade de Medicina, defendeu uma tese pioneira, interpretou de maneira inédita os fenômenos do amor, destruição e sublimação e origem da linguagem de forma a influenciar o pensamento teórico de Freud, Jung, Luria, Vygotsky e Piaget, uma mulher que foi uma das pioneiras em análise de crianças, foi a pioneira em unir a psicanálise à linguística e educação, escreveu cerca de 30 artigos, casou, teve duas filhas, foi professora da universidade de Moscou, conferencista, cirurgiã, médica e, ainda, compositora e música, não pode ser considerada nem louca e nem masoquista. Pois ela viveu intensamente tudo o que tinha que viver e dedicou-se à psicanálise e a todos aqueles a quem amou (p. 58).[5]

Amar somente o outro, dá trabalho chegando quase à falência de si mesma, mas amar a si primeiro para depois amar o outro, é revolucionário!!

Obrigada!


[1] CROMBERG, Renata U. A autoria de Sabina Spielrein. JORNAL de PSICANÁLISE 45 (82), 83 – 98, 2012.

[2] RICHEBÄCHER, Sabine. Sabina Spielrein – de Jung a Freud. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

[3] SILVA, Marcus Vinicius Neto; ALMEIDA, Marina Maciel de. Sabina Spielrein: Seu lugar na história da psicanálise e sua representação no cinema. Relato de pesquisa: 2019. v. 7, n. 1, p. 05-22 http://www.fafich.ufmg.br/mosaico

[4] RICHEBÄCHER, Sabine. Sabina Spielrein – de Jung a Freud. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

[5] CROMBERG, Renata. U. Sabina Spielrein – uma pioneira da psicanálise. São Paulo: Livros da Matriz, 2014.

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