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Transcrições Salpêtrière – Texto 3: Dois casos clínicos

Dois casos clínicos[1]

Histeria e Psicose

            Em razão das particularidades de seu caráter, Estela não parecia sustentar o enigma de seu sexo nos seus rapports[2] com o homem.

Durante sua juventude, ela se fizera a musa de um grande músico que, não sabendo como lhe provar a autenticidade de seu amor, cometeu a imprudência de lhe pedir em casamento – o que desencadeou de sua parte uma violenta recusa levando à ruptura da relação amorosa deles. Irritada e em plena confusão, Estela voltou ao seu país, após ter deixado esse homem no México onde ele diz ter passado frio e não ter compreendido a língua falada pelos que o cercavam. Para justificar sua reação face a face com esse homem, ela se serviu de um argumento ético, e mesmo religioso, declarando impossível uma união com um homem casado, mesmo que separado após longos anos de sua mulher, gravemente doente.

Histeria?

Muitos anos se escoaram em uma vida centrada sobre a lembrança de seu amante, que ela tivera que abandonar dizendo-se para não ir contra seus princípios, o qual ela seguia ao tocar sua carreira artística nos Estados Unidos pelo viés de revistas especializadas. A notícia de seu falecimento seguido de uma grave doença lhe foi transmitida pelas trocas de correspondências que ela mantinha com uma das filhas desse músico que ela considerava como sua irmãzinha.

Estela levava uma existência devotada às obras de beneficência, sua fortuna lhe permitia não ter que trabalhar para ganhar a vida. Aconselhando os membros de sua família na gestão do patrimônio, fazendo prova na matéria de uma certa acuidade de julgamento e de sólidos conhecimentos, ela se recusava a tomar decisões. Dotada de uma sóbria elegância e de uma profunda cultura literária e histórica, Estela sempre fora uma mulher desejável, sendo seu inexplicável celibato coberto por uma auréola nebulosa de mistério.

Eu a conheci em reuniões familiares e se tivesse então que estabelecer um diagnóstico, teria sem nenhuma dúvida pendido para a histeria; por causa, talvez, de sua sedução, de sua desenvoltura, de sua indiferença, e também desse lado fugitivo que criticava de sua mãe nas dificuldades. Ela se propunha como o objeto que inspira o homem, a família, mas sem jamais responder ao chamado e se situando sempre como um ser enigmático.

Após a morte desse homem, os membros de sua família, e particularmente sua mãe, confessaram ser interrogados sobre as causas de uma certa degradação de suas qualidades. Estela tinha perdido sua habilidade e sua vivacidade. Sua linguagem se tornara repetitiva e ela perguntava até a saciedade questões das quais as respostas eram evidentes; isso fez com que pessoas próximas acabassem por se afastar dela e sua vida social foi afetada. Ela parecia, no entanto, ter aceitado o anúncio da doença e da morte do homem amado quase friamente e sua resignação estava cada vez mais exaltada.

Tanto que Estela se colocava o problema do enigma da mulher, ela tinha sido musa, mas quando lhe foi preciso responder como mulher à demanda do homem, ela se refugiara na fuga. Sua frágil estrutura, supostamente histérica, permitira-lhe incitar o outro, mas, provocando o desejo, ela não tinha sido capaz de sustentá-lo com todas as suas consequências. Sua resistência à mudança de estrutura significante era então expressa pela recusa do casamento, ordenamento fálico que ela tinha ignorado quando estava no México, dado seu estado de confusão, estado do qual ela só sai falando com sua mãe e se entregando aos seus cuidados.

Nessa época, ela decide ir a uma região montanhosa afastada de Buenos Aires. Essa estadia, que em princípio devia ser curta, prolongou-se sem razão durante oito meses e inquietou sua família. Numa região silenciosa, frente a um lago, Estela viveu numa casa familiar que poucos empregados eram encarregados de cuidar. A família não passava mais as férias lá há muito tempo, a jovem mulher foi calorosamente recebida. De passagem na região, um de seus irmãos a visitou e a encontrou num estado de agitação e de terror que ele pensou que seria fácil de remediar. Alguns dias depois, Estela atravessou uma escarpadura montanhosa particularmente difícil com uma inacreditável agilidade, mas a presença no céu de um avião do aeroclube vizinho a colocou em tal estado de pavor que ela não reconheceu os lugares nem seus habitantes, camponeses. Seu estado de excitação se acentuava dia a dia. Ela preveniu seu irmão de que as linhas telefônicas que estavam sobre a mesa serviam de escuta e que os empregados a seu serviço roubavam a família e tentavam se apropriar da casa quase abandonada. Um médico da aldeia recomendou seu retorno a Buenos Aires e a família tomou a decisão de me consultar.

Encontrei-a agitada, silenciosa, aterrorizada e a única questão que ela fez aos que se encontravam lá comigo era de saber se nós já tínhamos tido medo de avião. Ela evocou lembranças de infância de medo da noite, medo do mar, etc., sem tentar comunicar o que quer que seja em particular. Parece que ela procura ocultar por perguntas suas razões delirantes, que farão, entretanto, rapidamente aparição. Seu estado de agitação motriz foi acalmado pela administração de neurolépticos.

Ela confessará a sua mãe ter tido uma aventura amorosa com um homem da aldeia, apelidado Tono, personagem do qual não se sabe grande coisa, salvo que ele vem de longe, mas que era apreciado por seus talentos de músico folclórico, o que lhe permitiu evoluir em todas as camadas da sociedade. Esse homem, do qual a separava uma diferença social abissal, protegia Estela e a empurrava de novo a se prestar a algumas de suas obrigações de mulher. Interpelada como mulher, ela se deixaria submergir pelo o que ela interpretava como o desejo do Outro, se ela se colocava na posição de mulher para seguir essa relação. Confrontada a essa situação, ela recusa essa condição de mulher a qual ela se opõe simbolicamente como $, para entrar nisso que ela chamará a “aurora do crepúsculo”.   

Coordenadas do delírio

Lacan diz que “para que a psicose desencadeie, é preciso que o Nome-do-pai, jamais tenha vindo no lugar do Outro, lá seja chamado em oposição simbólica ao sujeito.” Através do relato que Estela faz a sua mãe e a seu irmão, pode-se observar uma recorrência de significantes. O fato mais importante é que ela tinha decidido acompanhar seu primeiro amante em sua estadia nos Estados Unidos. Que ela tenha subido sozinha no avião que ia reuni-los confirme a coragem de sua resolução. Por conta, a partir da sua segunda aventura amorosa, quando ela é solicitada como mulher, o avião do aeroclube, aparelho comum que quebraria mais a monotonia da aldeia, torna-se o objeto estranho e seu segundo amante, apelidado de Tono pela aldeia, pois ele é popular por causa de sua música, não é mais que uma pobre réplica do primeiro. O que demonstram esses raros significantes? Que o conflito se instaura quando no lugar do Outro, onde não é jamais vindo o Nome-do-pai, que orientaria seu lugar conforme a metáfora paterna, encontra-se o $ em oposição simbólica – o que desencadeia um delírio que Estela só conta a sua mãe e ao seu irmão. No que me concerne, ela se delimitará a uma recusa cortês, mas firme e agira do mesmo modo com o médico que lhe administra seu tratamento.

No delírio que ela descreveu a sua mãe, ela assegura ter tido a faculdade de prever que alguma coisa ia acontecer, devido ao movimento dos cavalos e dos outros animais, que provocava nela um estado de alerta permanente anunciando uma infelicidade, e a propósito de que, a paisagem perdia suas cores. Mas as únicas palavras que ela pronunciará a mim a esse propósito serão: “A aurora de um crepúsculo.”  O resto deverá ser deduzido do relato a sua mãe. Nós poderíamos dizer que ela se aliviou da angústia e da excitação, fixando-se em uma estrutura delirante onde se vê a desordem crescente do imaginário atingir esse nível onde o significante e o significado se estabilizam na metáfora delirante, a saber, que diferentes personagens se ligam contra ela e sua família para se apossarem de sua propriedade.

Sua mãe, seu irmão e uma tia, sem falar das domésticas de seu domicílio de Buenos Aires, devotam-se para cuidar Estela. A tia em questão, irmã de seu pai, que leva uma vida social intensa e foi casada duas vezes com homens que ocuparam importantes cargos políticos, parece ser a personagem que organiza a ordem de suas identificações. Mas no lugar de levar essa identificação até suas últimas consequências em se casando e tendo, como ela, filhos, Estela se desvia e recusa de se realizar enquanto mulher procurando seu ser no campo do homem e articulando sua condição feminina como « mulher de » – ordem identificatória que pudera ser realizada se a metáfora paterna tivesse funcionado.

Mas aqui ao contrário, o “como” fracamente sustentado no imaginário, longe de fazer o leito de seu desejo, precipita a fase pré-psicótica, depois a fase psicótica atual, onde se pode observar a função do significante como que tal, gerador do delírio, face à impossibilidade de reproduzir no imaginário o que não apreendeu no simbólico. Era-lhe em efeito impossível de sustentar como mulher a partir do simbólico e aceitar os pedidos do homem, visto que sua precária estabilidade não se enraizava na ordem significante, mas provinha de uma fraca identificação com a figura de sua tia. O diagnóstico presuntivo da histeria é então descartado, não somente por causa das características da fase delirante, mas ainda porque não seria estabelecido apenas a propósito de que ela tinha selecionado dos homens casados – na mesma proporção que a esposa do primeiro músico, assim que essas, supostas, do segundo não eram figuras femininas centrais. No primeiro caso, tratava-se de uma enfermeira sobre a qual se sabia pouco e no outro, de inumeráveis aventuras do único homem, que não poderiam em nenhum caso dar corpos ao fantasma feminino de dom juanismo, esse último se sustenta do simbólico, como toda projeção fantasmática. No lugar de apresentar um fantasma neurótico, ela desenvolve então um delírio, com as obrigações que ela suscita, até a instalação de uma paranoia, sob uma forma primeiramente atenuada: “Meus princípios não me permitem fazer isso a uma mulher doente” depois mais complexo: “Esse homem e todos os empregados estão roubando a família”, em uma mistura confusa de personagens: a cozinheira, os camponeses, os aldeões, todos ligados num pretenso complô para despojar Estela e os seus.

Sua última aventura amorosa lhe colocou frente a um outro que quer significá-la, e ela se opôs a essa incidência do significante, porque ele emana do simbólico de onde ela não pode responder, e se precipita, assim, no delírio, opondo-se como $ no choque do significante. No lugar de uma intersubjetividade, de uma dialética, produziu-se um delírio que aboliu como $ afastando da dialética para projetá-la em direção a uma linguagem que ela não domina.

O outro é desconectado, pois ela ignora o conteúdo do que ele lhe demanda, o que explica sua perturbação e sua perplexidade quando lhe é proposto de se colocar como mulher real e não mais em simulacro. No primeiro caso, e contrariamente às aparências, esse: “Eu não posso fazer isso a uma mulher doente” não tem grande sentido e revela unicamente que sua estrutura, que se aparentava algum pouco à da histeria – ajudar o homem, acompanhá-lo nas suas viagens, inspirar, seduzir –, só era uma formação imaginária desprovida de ordenamento fálico que teria encontrado seu suporte no Complexo de Édipo. Mesmo que seja difícil isolar as leis próprias do significante ativo desse caso, nós podemos facilmente reconhecer que seu acesso ao fenômeno crítico que caracteriza a fase inicial de sua perturbação psicótica se situa no momento em que ela é convocada a ocupar um lugar e não a dar um simples consentimento.

Lacan diz que o significante homem e o significante mulher diferem das atitudes dos quais eles se encarnam; que são mais que simples comportamentos sociais ou sexuais, passivos ou ativos, mas que são do registro do ser, e que é pela palavra constituindo o essencial  do Complexo de Édipo que o humano possa acessar a uma estrutura humanizada do real. É preciso que o Complexo de Édipo seja vivido, que surja nele a identificação na sua autêntica dimensão, na estrutura simbólica em tanto que intersubjetividade e organização dialética. Lá reside a importância de desvencilhar os efeitos de significação, pois, na neurose e na psicose, os jogos de atração, de repulsão e de conflito são eles mesmos, diz Lacan, mas não sua fenomenologia e nem seus resultados. A psicose é ligada a alguma coisa que se situa no nível dos rapports do $ com o significante. É porque eu coloquei o acento, no caso que nos ocupa, sobre a obrigação onde se encontrou Estela, de colocar em jogo o significante em significações implicando-a como mulher, pois isso mostra como aparição de um termo novo na ordem significante toma um caráter devastador. Não encontrando apoio no Complexo de Édipo, ele revela a falta essencial de um significante, buraco da psicose, que indicam esse abatimento, essa perplexidade que Estela traduz com sua “aurora do crepúsculo” – sintagma que lhe serve para definir o que ela sente com a aproximação do vazio que provoca a questão: “Ele me selecionou?”, vazio onde ela se precipita sem mesmo procurar uma resposta.

Essa interrogação, que não deriva de uma colocação em questão de seu ser que seria propriamente neurótico, é a de um ser desorientado pela urgência da demanda – onde nós reconhecemos a consequência de uma falta do significante do Nome-do-pai, que introduz a dimensão do ser e do ter, dimensão fálica que permite formular essa questão a alguém e não de sofrê-la, instaurando assim a intersubjetividade e a ordem dialética. Porém, essa questão vem, nesse caso, de um lugar onde o significante é ausente. Na pré-psicose de Estela, a sensação de aurora de um crepúsculo não é uma simples fórmula poética, mas bem a patética experiência de quem se encontra na borda do abismo, porque é colocada em dúvida toda a articulação significante, até então mantida em um equilíbrio precário, esse abalo constituindo a chave de sua entrada na psicose. Antes, ela compensava graças à identificação imaginária que lhe permite encontrar na irmã de seu pai um lugar na dialética. Seu pai, de quem ela só lembrava na intensa humilhação que seu caráter e sua presença provocavam no seio de sua família, longe de permitir a união da mesma, opõe o desejo à Lei.

Em consequência, Estela não identifica a falta do Outro com sua demanda. Aparentemente, ela se esquiva como o objeto, mantendo seu desejo pela intensificação, mas se era verdadeiramente assim, ela poderia se interrogar sobre o desejo. Porém, no seu crepúsculo, o desejo é uma massa amorfa onde ela não pode se guiar, por causa da falta de um significante primordial, falta que faz surgir uma questão sem resposta possível. Isso é somente o delírio que ela articula, o “Ele me selecionou?”, supondo ter descoberto que um grupo de personagens cúmplices espoliava sua família através dela. Sua desordem fez obstáculo a toda articulação de uma resposta quanto a seu ser – o extremo sofrimento que ela sente quando a interrogam permite observar.

 A escolha terapêutica

O que determinou minha decisão de não submetê-la a uma qualquer psicoterapia foi essa profunda dor que ela sentia quando lhe faziam questões, e que justificava a impossibilidade de encontrar nelas um sentido. Em face desse discurso imposto, eu me limitava então a lhe oferecer minha presença, na estrita medição onde ela a solicitava – pois seu egocentrismo pronunciado, acompanhado de uma tendência à agitação psicomotriz e de uma propensão à passagem ao ato, transformavam toda ação terapêutica em manobra de agressão. Estela foi então tratada por uma terapia medicamentosa e entrevistas periódicas, consistindo em diálogos de curta duração, segundo sua demanda. Os membros da família foram informados do modo de abordar os temas ligados à sexualidade, assim como de nossas observações – e eles foram recomendados a manterem um diálogo que não seja nem interpretativo nem interrogativo, isto é, deixar Estela levar a interrogação até o ponto onde ela mesma era interrogada. É preciso notar, aliás, que cada uma de nossas tentativas por transpor as barreiras sucessivas que ela erigia no seu discurso soldava-se por uma agravação de seu estado, manifestando-se por um acesso delirante acompanhado de agressividade e de atos que colocavam em evidência um hiato entre $ e sua palavra.

Cada vez que era colocado em jogo o mecanismo de forclusão, a continuidade do discurso se tornava impossível e o problema se colocava de reintegrar esse pedaço da história, conhecida e mesmo confessada, que provocava uma desestabilização na coerência do discurso, uma recusa do diálogo e a aparição do pânico, conjuntamente a uma tendência à maior desorganização. É o que justifica nossa demanda de assistência a sua família.   

Maria Graciela Ronanduano de Maeso.

Traduzido do espanhol por Dorine Mathon-Ezaguirre.

Dos fantasmas à frase do fantasma

Nós evocaremos, na cura de uma paciente, um momento de virada que permite agarrar os remanejamentos que foram operados na posição do sujeito quanto às suas identificações e aos seus sintomas, e isso, em ligação com um acesso ao fantasma, mais precisamente à frase do fantasma fundamental. Algumas observações prévias são indicadas.

“Todas as mulheres têm regras, eu não tenho regras, então eu não sou uma mulher…” É para a ajuda desse estranho silogismo que essa analisante de 30 anos apreenda, num momento de sua cura, sua recusa à feminilidade. Ela tivera, em efeito, regras irregulares, ou mesmo ausentes, ao longo de sete anos do casamento que ela estava rompendo quando iniciou sua análise. Essa queixa constituía de fato sua verdadeira demanda de análise, congruente com a questão da histérica: “O que é uma mulher[3]?”

Esse sintoma, que enunciava então uma posição do sujeito quanto à escolha do seu sexo, combina-se com impulsos bulímicos e com crises de depressão e de tédio, que a faziam pensar em suicídio.

Ela se diz “impulsionada para satisfazer todas as demandas”, no seu rapport com os outros, e, num primeiro tempo, com a sua mãe. Na sua infância, ela permanecia junto dela, para impedi-la de se deprimir nas longas ausências do pai. Ela toma mesmo o lugar desse último no leito conjugal, e tornando-se confidente de sua mãe. Ela adota seu discurso sobre os homens, “sempre partem… bebem… namoram… Só pensam em engravidar as mulheres para abandoná-las em seguida. Desconfiar, a menos que encontre um ‘bom partido’”. O que não falta acontecer: ela aceita o primeiro homem convenientemente titulado que a pede em casamento… Com o qual ela não demora para se entediar (achando-o “frágil demais”, ela o considerava mais como “um alter ego… um irmão”, e não podia considerar em ter filhos com ele).

Seu sintoma de bulimia – tornou-se sintoma analítico, visto que ele vai alimentar sua queixa na transferência – desencadeara-se na adolescência, quando o pai, caminhoneiro “peso-pesado”, retorna ao lar, após muitos anos passados nas estradas, muito doente, tendo perdido a metade de seu peso. Tratado pela mãe, ele tentou trabalhar novamente em seguida como transportador nos Halles, relacionando com a casa o alimento familiar, então ele encherá regularmente a frigideira – comendo somente à noite, dormindo de dia. É quando ela é afastada de seu lugar junto de sua mãe que ela se refugia nesse sintoma, mantendo sua identificação com o pai e, assim, seu lugar junto da mãe.

No início da cura, a propósito de um sonho onde sua língua é um sexo de homem, e de um outro, onde ela vomita devido a um nome próximo ao do seu pai, ela se interroga sobre sua recusa, sempre manifestada, de ser a filha desse pai, começa quando ela tinha três anos (partida se tornou trauma? Promessa de amor não realizado?). Que seria, desde quando, esse sintoma de bulimia? – se isso não é uma tentativa de encontrar um traço – significante, traço unário – por uma identificação vinda ao lugar do amor. Ela descreverá também essa “resposta automática” que ela faz às vezes, “como a pedido de um programador: comer tudo o que contém na frigideira, os olhos perdidos, sem refletir…”. Evocação onde se deixa reconhecer essa “grossa voz” do superego, do qual fala Lacan, com seu imperativo de gozo: “coma!” E trata-se aí, também, de uma submissão à cadeia significante do Outro – autômato –, onde essa atividade silenciosa e destrutiva – “gozo ruinoso do sintoma” – evoca a presença da pulsão de morte e do masoquismo fundamental, seja a petrificação do sujeito sob o significante-mestre (S/$) [4].  

  É nesse registro da alienação significante que nos é preciso agora situar esse afeto de tédio, se prevalece nessa paciente na fase de cura, com seu correlato de torneamento em círculo, pontuado de sucesso nas cartas: modo de pedir, talvez, um “bom encontro”, tuchè suscetível de despertar, de surpreender?

Visto que, ao oposto da angústia, que é indicador de presença, “sensação do desejo do Outro” diz Lacan, o tédio seria mais o recobrimento do desejo pela identificação ou o amor. Em efeito, em Televisão, Lacan recompõe o termo Tédio (em francês, ennui)[5] em Unien: “o Outro teria a substância do Um […] o Um místico, Éros, princípio de união […]”.

Mas para voltar à bulimia, uma outra implicação – a do fantasma – pode também perceber essa dimensão de gozo do sintoma, e de sua persistência. Os fantasmas, em efeito – Freud o enunciou – dão sua substância ao material do sintoma. Vejamos como isso se justifica nesse caso.

Presentes, de fato, desde o início da cura, mas com um estatuto imaginário, sob a forma de devaneios eróticos prolíficos, eles a acompanhavam, desde a infância, de uma satisfação masturbatória. Um cenário típico lhe servia de trama: a paciente é espectadora de uma cena onde “grandes mulheres” vinham numa clínica para emagrecer. O médico, “homem forte”, as ataca e as chicoteia. Uma variante dessas fantasias faz apelo a imagens de santos bíblicos martirizados, ou ao Cristo ele mesmo, crucificado. A correlação do sintoma e dos fantasmas é atestado – a sua revelia – no dizer dessa analisante, visto que ela evoca, um dia, um álbum de fotos, onde ela tinha colocado, sobre duas páginas contíguas, de um lado, o caminhão peso-pesado de seu pai, de outro, uma imagem de Cristo, o corpo ferido, nos braços do Pai. De fato, ela dirá que a religião a fascinava: “sofrer para o pai… ou pelo pai!…”. Nessa formulação, é preciso reconhecer o desejo, refutado, de ser amada pelo pai, como Freud nos convida na sua análise do fantasma “Uma criança é surrada”[6]: “Na primeira fase desse fantasma de fustigação, que deriva de uma relação incestuosa com o pai, […] a fustigação concerne uma pessoa ciosamente odiada.” Voltaremos a esse assunto. Mas essa significação permanecerá por longo tempo velada na cura, devido à fixação do fantasma fundamental, menosprezada, na qual o sujeito permanece o engano na sua vida. Em testemunho da queixa – exprimindo-se em sua demanda – devido ao sofrimento dos sintomas, vindos ocultar o desejo.

A outra mulher

Uma mudança de discurso, no entanto, produzir-se-á quando essa analisante vai se demarcar nessa submissão sintomática aos significantes-mestres, sob os quais, como sujeito do desejo, ela só poderia advir. Essa mudança vai passar por uma interrogação sobre sua identidade sexuada. É lá que ela enunciará o silogismo evocado acima, concernindo sua amenorreia passada. Ela se lembrará então de ter muito tempo esperado que lhe crescesse um sexo de homem – mas também de não poder suportar sem mal-estar ver uma mulher grávida. Mais precisamente, é a relação com o outro sexo que causava mal-estar. (Lacan lembra, no “Radiofonia”[7] “a rocha” que constitui para a mulher “o significante homem, sentido para ela como frustração”?). Essa confissão testemunha de uma retirada parcial de refutamento, fez-lhe reencontrar (ou reconstruir?) uma lembrança esquecida: a repugnância horrorizada que ela sentia na visão dos seios nus de sua mãe. Deslocamento do horror de castração maternal sobre esse objeto seio – “é dessa falta percebida da mãe, diz Lacan[8] que o sujeito teria sido levado a vir substituir-se”.

Período da histerização na cura, então, onde “a evocação da castração tem por efeito a produção do sujeito como barrado”, que toma então o lugar do agente do discurso ($/a). Ao mesmo tempo, vai se formular a questão desse sujeito dividido: “Eu não sei o que eu quero” (esse “não-saber” da neurose, do qual fala Lacan[9]).

Ela manifesta, no entanto, uma vontade de trocar, vontade de outra coisa. Ela evoca um homem que ela tinha amado na adolescência, platonicamente, que – mesmo quando no período do seu casamento – telefonava-lhe às vezes durante várias horas, e que ela amava ouvir. A questão de seu desejo – mantido insatisfeito –, ao qual é feito aqui a alusão, é então percebido – na transferência – por uma demanda incondicional de amor, demanda de resposta, de presença: “apelo a receber um complemento de ser” para vir completar essa parte perdida pelo sujeito, pelo fato de sua prisão na linguagem[10], falta ocultada até então. O circuito da pulsão invocante é mobilizado no “fazer-se escutar”, que vai em direção ao Outro, que é “movimento de chamada”[11]. Ela se apaixona – é o encontro – por um homem casado, um poeta que sabe manejar a língua, quando ele a convida a vir a ouvi-lo. A língua não é mais a metáfora do falo, mas a metonímia do desejo. Ela sonha que ela olha pela janela de seu amante para saber se ele fez amor com sua mulher, e – para sua grande surpresa –, no lugar disso, ele fala com ela. Ele a seduz pela orelha, dir-se-ia. No que se indica aqui que a pulsão parcial – satisfação das bordas corporais – pode ser tomado como substituto no gozo sexual – gozo conseguido aqui no sonho por efração. Mas Lacan não falou da pulsão como “derivada do gozo”?[12]

No que se indica também, por esse sonho, a posição histérica: “sentir-se nas homenagens dirigidas a um outro”, e oferecer “a mulher em quem ela adora seu próprio mistério para o homem, do qual ela toma o lugar sem poder gozá-lo”. Colocada assim fora do circuito do gozo ($/a), visto que é uma outra mulher que lhe priva disso, ela só poderá então “enganar o seu desejo” (e o desejo do Outro), restando na demanda. De fato, ela se coloca na espera do apelo desse homem, ao qual ela responde sempre “presente” (mas ausente em fato, $, porque refugiado no seu fantasma inconsciente). Sem dúvida manifesta ela aqui um fantasma de neurose onde, diz Lacan[13], “há fuga diante do termo do desejo do pai, ao qual se substitui o termo da demanda”. De sorte que, ele acrescenta pela neurose, “a demanda do Outro”, a pulsão, “toma função de objeto no seu fantasma” (que se escreve $ punção de D). Há, de fato, nessa repetição da espera dos apelos, um ponto de real onde alguma coisa retorna sempre ao mesmo lugar, traçando um circuito pulsional.

Porém, não será questão para esse homem se afastar da mulher com a qual ele vive – o Outro mulher, para ela, que, além disso, tem o mesmo nome que a analista. Ao amor então, vai suceder a decepção, o abandono concernindo seu ser também rejeitado. Ela decide então romper com esse homem, o qual ela não conseguiu ser a falta, apesar do vazio que ela sente. Ela tem novamente ideias de suicídio, e me anuncia, por uma carta, sua intenção de parar sua análise, pois ela tem bastante de “dar sem nada receber” Ela acrescenta: “É sem apelo.” Evidentemente, eu a chamava, incitando a prosseguir.

Mais tarde, ela teve um sonho: ela não tem mais nada a dar comer aos seus pais, sua frigideira está vazia. Ela quer comprar algumas coisas na loja, mas ela sai novamente sem nada. “Não importa” ela se diz no sonho… E ela se acorda. No fundo, conclui ela, essa falta lhe faz suportar de não vir satisfazê-la no outro (Ⱥ). Ela foi “o objeto-descartado” da demanda desse homem, “a franja de sua vida” (são suas expressões). Ela dirá também mais tarde, de um modo surpreendente, “o pequeno cachorro com voz do seu mestre”… Como ela foi para seus pais, passando seu tempo a “se fazer estufar”. Mas isso não é mais o que ela quer.

Porém, Lacan nos ensina que o desejo se apresenta ao sujeito como o que ele não quer. Agora vai tratar-se, para ela, de fato, de um encontro – um encontro ruim, Tuchè – lá onde o Outro não é mais o significante-mestre, o pai ideal, um Nome-do-Pai tão bom, e, na transferência lateral, esse poeta, o suposto saber sobre a língua, sobre a letra, que tinha lugar.

É o pai original, o “pai gozoso” que vai funcionar (o pai real, o superego, o pior…), aquele que está em jogo em “Uma criança é surrada”, (esse do qual Lacan fala na Ética como “o Ser supremo em maldade”, onde o chicote é o significante-mestre que bate, barra o sujeito[14]. Vai tratar-se aí, para o sujeito, segundo um enunciado de Lacan sobre o fantasma[15], “de ser instrumento, de servir o desejo do Outro”. Ela tinha, de fato, sonhado “que um personagem destruidor, a encarnação do mal”, segundo seu dizer, e ela se encontrava marcada no rosto. Portanto, ela me diz, seu pai jamais havia batido nela, ele era muito fraco, mas ele fez sofrer muito a sua mãe, por causa de outras mulheres. Ela vai então “atualizar” essa “realidade do seu inconsciente como sexual” – seu fantasma – através do que designarei como um acting-out, considerando – durante o período de férias de Natal – fazer um anúncio num jornal para encontrar um homem que quisesse amá-la. Ela será a mulher coberta de cartas – “Era um chamado, um grito, ou o suicídio” ela me dirá.

Trata-se, de fato, nessa escolha forçada, de tentar uma separação, de sair de sua alienação primeira, de juntar seu ser de objeto, seu “eu sou” de gozo (mobilizada pela questão do Che Vuoi?, surgida no tempo precedente). Isso foi, felizmente, não através da passagem ao ato do suicida, como a separação selvagem, radical, mas pela colocação em ato do fantasma[16], dessa vez sob a fórmula $ punção de a, lá onde “o que para ela é A mulher tem lugar de objeto” (como lembrava M. Silvestre[17]).

Ela vai colocar de fato em jogo esse lugar de Outra mulher, na estrutura – aquela que, conforme a sua história, para ela, encontra-se no fim do circuito das rotas do pai, aquela à qual é suposto gozar, a ilegítima. Trata-se, nesse novo cenário, do decalque de suas fantasias eróticas – mas onde ela perceberá, não sem angústia, que ela não é mais a cineasta, mas a marionete, a se oferecer, dessa vez, no lugar dessa Outra mulher.

Quando eu a vi se lançar nesse assunto, e que ela me havia feito a confissão das cartas, eu lhe disse: – “Mas, essas cartas, deve falar delas aqui…” Ela respondeu imediatamente – “Eu pensei que eu poderia jogá-las no lixo…” Eu cortei a sessão nessa réplica.

Na sessão seguinte, ela me explica, com uma certa exaltação, que é formidável, que ela quer ser “a preferida”, a que faz “vacilar o homem”, a que é escolhida “além da mulher legítima” (da qual ela não pode jamais ocupar o lugar sem tédio). Ela acrescenta: “eu sou irregular… eu sou a favorita do gado.”

Como lhe fazer observar a verdade do que estava montado sobre a cena concernente ao seu ser objeto? – verdade a qual o saber é ausente, nesse acting-out que Lacan diz se situar ao mesmo nível que o fantasma e que, diz ele, “deve ser interpretado (à diferença do sintoma, que é gozo, que se satisfaz). No curso da cena que segue, então que ela diz: – “Bem, aqui está, eu vou conseguir agora esquecer esse poeta, eu não vejo o porquê tinha precisado de tanto tempo para me afastar dele. E depois, quanto tempo eu vou ainda falar dele em análise?”, – Oponho-me: “… Ou dela.” Ela diz: “Eu não compreendo.” Eu corto, então, a sessão. Ela começa a sessão seguinte por essas palavras: “De fato, esses homens, o que eles querem, é me tomar como objeto, eles só pensam no sexo; a maioria são homens casados, e é para se divertirem comigo, e depois, eles vão me deixar…” e ela acrescenta “isso não é o que eu quero.”

Nós veremos que essa denegação tem “como sempre” – valor de afirmação, pois ele explicitará pouco depois esse cenário fantasmático: oferecer-se a um homem que ela julga mal, para se fazer em seguida maltratar ou abandonar… Como essas irregulares (as “Outras-mulheres”), lá onde se encontra seu ser de gozo. Mas, no imediato, ela diz – e pode-se chamar o que surge aqui uma retirada de refutamento – “Por que eu passei meu tempo a denegar meu amor por meu pai? É aqui, com a análise, que eu me percebi pouco a pouco. Mas quando você disse: ‘ou dela…’ você apontava justamente esse momento onde, no início da análise, eu pretendi não amar meu pai? De fato, eu resgatava o discurso da minha mãe sobre os homens, e eu estava numa célula fechada com ela. Ela unicamente me interessava.” Eu resmungo: “sim… ela…ou, além dela, a irregularidade…” citando aí um propósito “colhido na trama de seu discurso” Ela diz de novo: “Eu não compreendo.” – “Não importa”, digo-lhe. Mas ela repete: “Eu penso em alguma coisa, eu me coloquei em cólera porque um desses homens que eu encontrei, separado de sua mulher, falou-me de sua filha dizendo: ‘Eu só a vejo de quinze em quinze dias, e isso é suficiente!’” e ela acrescenta: “Eu experimentei um acesso de raiva contra esse homem que oferece tão pouco lugar para a sua filha, e prefere se encontrar com outras mulheres…” (Nesse tempo de sua análise, além disso, a vizinhança da Coisa que ela achava abordar aí, a qual pode testemunhar a evocação do grito, fará surgir também um sentimento novo de raiva da mãe).

Nas sessões que seguem, lembranças – ou construções – foram produzidas. Então, ela me disse ter repensado nessa “outra mulher” que eu havia apontado, mas nem sempre conseguia ver do que se tratava, ela me contou: “Um dia, quando era criança, minha mãe tinha me mostrado uma mulher, na rua, dizendo-me: – ‘Tu vês aquela mulher, bem, é a ex-empregada amante do teu pai… e ele a deixou. Era a carteira.’” Eu parei a sessão nessa mulher entregadora de cartas, essa “Outra mulher”, designada aí como objeto de gozo do pai, o que não é certamente passado despercebido à criança que ela era, e pode constituir alguma coisa como a irrupção do sexual, o encontro com o desejo do Outro, o x do Che Vuoi? Sobre o qual os fantasmas se edificam.

Ela dirá na sessão seguinte que ela se lembra de uma outra sequência de sua pequena infância, entre seu terceiro e décimo anos de idade, então que seu pai, quando ele era caminhoneiro peso-pesado, partia pelas estradas, muito longe, às vezes durante um mês seguido, e chamava, certamente regularmente, sua “regular”: “Nós esperávamos seu chamado… e quando eu o escutava, eu sentia alegria.”

Além do lugar de o “escutado” nas suas relações com os homens em seguida, talvez precise ver aí o ponto onde o sujeito pode ser levado a aceitar a significação fálica – efeito da metáfora paterna – sempre refutada, tem-se visto (crença contestada, na histérica, diz Lacan). De fato, ela localiza aí uma parte do gozo, um mais-de-gozar, no campo do Outro, e isso pode ser a partir de alguma coisa que é revelada aí, nessas sequências, que ela vai poder reintegrar seu desejo à sua causa (a → $).

Fazer com o seu sintoma

Em efeito, ela evoca então um feito jamais vindo até então na sua análise, feito que me aparece – depois – como fundamental concernindo uma nova partida simbólica desse acting-out com as cartas: ela me diz que seu pai, nesse período, enviava-lhe frequentemente cartas, e ela conservou uma, muito bonita, como uma carta de amor (ela havia pensado então… que só se pode enviar para a sua preferida), que, além disso, encontra-se sempre na sua caixa de joias. O valor agalmático dessa carta se indica aqui claramente, parece-me, mesmo que o valor fálico o qual o sujeito se sustentava no seu ser, sem sabê-lo. Eu me notifico, além disso, que é uma letrada – uma mulher de cartas – e que seu estilo é incontestavelmente epistolar: ela toma com prazer a caneta em diferentes circunstâncias de sua vida, e frequentemente escreve pequenas cartas muito bem construídas as quais eu não tinha tomado o verdadeiro sentido, na transferência.

É a particularidade de esse estar aí, que ela sempre procurou fazer reconhecer na vida, para hospedar no Outro, encontrando – viu-se – o tédio ou a depressão, segundo os obstáculos que se opõem aqui. Pelo advento desse ser de gozo do sujeito, seu “eu sou isso”, ela encontra um estado civil lhe dando acesso ao Outro, Outro no qual ela pode então se excetuar (– ɪ). Ponto de separação aqui, onde o sujeito, encontrando sua equivalência para o que ele foi no desejo do Outro, pode “se identificar ao seu desejo”[18]. De fato, ela encontra, como objeto, o lugar que lhe fazia falta ao nível do significante.

Essa interpretação, pelo fato de que ela constrange uma identificação (“ele”, o homem, o pai – significante ideal que revive a frustração para uma mulher), teve o objetivo de separar o I do a,para reconduzir o sujeito em direção ao polo onde se situava – um ponto ostentoso – o lugar do gozo, esse significando que faz buraco – “traumatismo”: “Ela”, o Outro-mulher. (Esse significante de A mulher, o qual J. –A. Miller lembrou no seu curso, “Do sintoma ao fantasma, e retorno”, que na neurose, ele é forcluído pelo sujeito.).

No curso das sessões, de fato, contemporâneas a essa interpretação, coisas surgiram concernindo justamente sua identificação – a escolha de sua posição de sujeito em rapport à sexuação, sob formas do retorno de um sonho que ela teve iniciando sua análise, onde ela era o Cristo sobre a cruz, emasculado. E ela me dirá: “Mas de fato, eu tive esse sonho no início de minha análise. Então, eu já sabia – sem admitir – que eu tinha denegado a diferença sexual, e que eu tinha rivalizado com o homem, com para dizer: os dois parecidos.” Talvez seja preciso entender também: os dois castrados, pois identificados no (– φ), e observar que no lugar de assujeitar no significante fálico, no significante primordial, e reconhecer nela esse ponto de falta, ela tinha feito da castração uma paixão, um gozo. De fato, ela tinha, em tanto que neurose, satisfeito a um prazer de castração suposto no Outro.

Desde então, se no lugar de amor para o pai, permaneceu refutado, era chegada à identificação, o refutamento cedente, essa identificação aparece (identificação ideal, simbólica) e pode ser atravessada. Ela se percebe dessa recusa mantida de aceitar ser uma mulher, de “satisfazer à identificação narcísica” (e por causa, falha desse significante de A mulher; há mais uma impossibilidade). De fato, quando ela tinha começado a constituir essa lista de cartas de homens, ela tinha dito: – “Eu também, tenho uma lista, como Don Juan… Além disso, eu amo os homens que são Don Juan, eu amo os homens que têm apetite.” E ela tinha acrescentado, num sussurro: “… como eu”. No fundo, ela não tinha sido sem se perceber que esse “como eu” constituía bem sua posição no fantasma.

Eu farei a hipótese que no que se passava aí para ela, tratava-se de duas posições no fantasma $ punção de a: – de uma parte, a do $ (seu eu forte), onde ela podia se colocar no lugar do homem visando o Outro mulher como objeto (isso aparecera nesse sonho que eu tinha evocado onde ela via esse poeta, pela janela, com sua mulher); – e de outra parte, ulteriormente, no seu acting-out,do a: ir ao encontro de seu estatuto de objeto, objeto descartado no seu desejo do Outro (“ser a favorita do gado”, mas também “ser o pequeno cachorro da voz de seu Mestre”…), numa submissão à vontade de gozo suposta ao Outro, um “que tua vontade seja feita”, em suma. Lá, ela não sentirá mais euforia, mas angústia e abjeção para o que ela encontra. E ela perceberá muito rápido que ela prefere ficar um pouquinho abandonada nessa posição, do que ela ficará doravante advertida.

A partir daí, ela não vai mais ser constrangida de “sofrer o martírio”, segundo sua expressão, na sua relação com os homens – voltaremos a esse assunto.

Ela se percebe então que todos os seus sonhos chegam ao mesmo sentido: “deixar a casa do pai”, como ela o diz, o que ela acha divertido, pois ela tinha sempre – nos seus sonhos, como na sua vida – encontrado impasses e fracassos na procura desse lugar. De outro modo, “do Nome-do-pai, pode-se também dispensar, à condição de usar…”[19]. Ela percebe que sua “passividade” sua “submissão” – essas são suas palavras – sua “espera”, era um modo “de escutar [nela] uma pequena voz”. Agora, se [ela] se sente um pouco vazia, é talvez porque essa pequena voz se cale. E ela acrescenta: “não há mais isso… E esse silêncio é às vezes difícil para suportar…”. Ela se tornará, além disso, naquele tempo, ela mesma frequentemente silenciosa na cura. Circuito da demanda, essa vez esvaziada, onde se revela a presença do objeto a (“O objeto a é o que supõe de vazio uma demanda[20].”)

Num sonho que eu liguei em série com esse dizer, o analista fala com ela, mas ela não escuta nada do que ela diz. Há aí um “nada (para) escutar” no lugar do analista, então que no lugar de analisante, um esvaziamento – uma cessão, uma perda – parece ser produzido, concernindo o mais-de-gozar do Outro. E, sua análise tomou um rumo de trabalho muito apertado, ela vai, de uma parte, na sua vida, colocar-se a seguir nas conferências de psicanálise, e de outra parte, na cura, questionar um certo número de coisas, incluso o tipo de fantasma masoquista que ela pode ter. Ela se perguntará por quê. Ela tinha certamente realizado antes que se tratava “de um caso de linguagem”, “a operação da linguagem”, mas um dia ela dirá: “Será mesmo que todas essas dificuldades dos rapports entre os sexos, esses fracassos que eu vivi, e que são certamente inevitáveis, haveria uma razão?  Na minha infância, eu teria sido seduzida por meu pai, meu irmão?”. Ela procura um real.

Ela renuncia rápido à ideia de encontrar um trauma desse gênero. Mais que isso, é preciso aceitá-lo, como ela o diz, “que não haja nada para explicar os impasses da relação entre os sexos”. Ela sabe agora, diz ela, que é seu desejo que ela assim articulou sob a forma desses fantasmas de agressão, nos quais ela se satisfaz em imaginação. E esses fantasmas, acrescenta ela, “como que pseudo-resposta que ela se dava, fizeram anteparo as suas relações com os outros”. Não descobre ela em suma – para sua maneira – o que Lacan pode enunciar: “Não há rapport sexual” [S (Ⱥ)]. É um achado de “teoria”… Ela vai, no segundo tempo, fazer um outro – mais particular –, que lhe fará transpor um não (ela falará de uma mutação que ela sente se operar nela) e, talvez, cessar de ser cravada na fixação do fantasma fundamental, o qual parecia, no trabalho que fez (em 1 ano) a partir dessa interpretação, que ela pode tomar a medida. Eu voltarei a esse assunto para concluir.

Ela dirá um dia que por escutar uma menininha, na casa de seus vizinhos, rindo ou chorando, tanto faz, brincando com seu pai, ela lembra de ter recebido de seu próprio pai, uma forte palmada. Ela relembra também essa lembrança em questão. O acontecimento lhe aparece “fictício” (mas a ficção não é a estrutura mesma da Verdade?). Apesar de tudo, ela dirá: “É tudo o que me resta de minha infância.” E essa frase lhe vem: Quem gosta, castiga. Ela acha que não há nada a acrescentar. De resto, ela não falará mais novamente, não mais de seu passado: “Ser, isso não é nada além de esquecer…” enunciou Lacan.

Eu seria tentada, para acabar, de situar essa frase como seu modo para ela de reagrupar, de reduzir todos os elementos imaginários (todos esses devaneios eróticos), e o real de seu fantasma – o que retorna sempre no mesmo lugar, esse “eu apanhei do pai”, para correlacionar, parece-me, com seu “eu sou a favorita”, como um “eu sou” de gozo, de contê-los, de fazê-los entrar numa frase – um “axioma”, como o chamou Lacan, expurgado, lógico, que não é nada do outro, diz ele, que “a articulação significante ela mesma”. Mas Lacan dizia também: “Essa proposição: ‘uma criança apanha’, sustenta-se de um sujeito dividido pelo gozo.” Acrescentava: “O sujeito recebe seu próprio gozo sobre a forma do gozo do Outro.”

Ela pode operar – na cura – a redução do Outro (o Outro da fala, o sujeito suposto saber) ao a, a esse “resto”, irredutível, “que não se pode engolir”, que pode causar o desejo do sujeito (a → $).

Após essa sequência, ela se sentiu muito melhor, “leve”, “alegre”, “livrar do peso de sua culpabilidade” (para retomar suas expressões). De ter podido, dessa vez, ceder sobre seu gozo, seu fantasma, e não mais sobre seu desejo? Ela vai, aliás, manifestar por um “bem dizer” seu modo de “se reencontrar no inconsciente, na estrutura”[21].

Então que ela evocava um homem com a qual fez o não se engajar, após alguns meses, não esperando dele – parece – de ser castigada, não lhe demandando mais “de ocupar para ela esse lugar de impotência, do (– φ)” (como a disse tão justamente M. Silvestre), ela dirá: “Eu teria colocado em tempo a encontrar em mim o desejo de viver com um homem!”. “É uma certeza”, acrescentará ela, aliás, não a propósito da escolha que ela fez desse companheiro, mas de sua própria posição em rapport ao outro sexuado. Em suma, ela parece poder fazer agora com seu sintoma: o parceiro sexual.

Eu terminarei aqui essa exposição, que eu acreditei levar até esse ponto onde ela diz ter percorrido como uma fivela, e onde ela toma a decisão de parar a sua análise – ela sabe o suficiente. Essa fivela teria afastado alguma coisa que faz que ela não espera nada de mais, na transferência? – e que “seu saber lhe parece suficiente”[22] – seja que ela é passada de uma impotência para saber (o não-de-saber do refutamento) para uma impossibilidade para todo saber? Em todo caso, é a aposta que eu faço, deixando-a se separar de sua análise.

Françoise Schreiber.

Referências Bibliográficas:

DUBOIS, Jean. Lexis – Dictionnaire de la langue française. Librairie Larousse: Paris, 1975.

MAESO, Maria Graciela R. e SCHEREIBER, Françoise. Deux cas cliniques.  In: ORNICAR? 39. Revue Du Champ freudien. Hiver 86 – 87. Octobre-Décembre 1986. XIIº Année numéro 39. Navarin Éditeur, 1986. P. 05 – 07. Le Iº septembre 1974.Le Iº septembre 1974.

REY, Alain. Le Petit Robert. Dictionnaire alfhabétique et analogique de la langue française. Nouvelle édition Du Petit Robert de Paul Robert. Paris: R Le Robert, 2013.

REY, Alain. Le Robert Pratique. Dictionnaire de Français.  Dictionnaire d’apprentissage de la langue française. Rédaction dirigée par Alain Rey. Paris: R Le Robert, 2013.

SILVA, Andréa Stahel M. Dicionário semibilíngue para brasileiros: Francês. Traduzido por Andréa Stahel M. da Silva. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.


[1] Tradução do francês para o português, do texto de Maria Graciela Ronanduano de Maeso e Françoise Schereiber, realizada por Aristela Barcellos de Andrades (Psicóloga e Membro da Associação Clínica Freudiana na época, hoje Membro do Salpêtrière Espaço Psicanalítico) e Cristina Severo (Licenciatura em Letras com Habilitação em Português, Francês e suas respectivas Literaturas) da Revue du Champ Freudien ORNICAR ?, Octobre – Décembre 1986 – Hiver 86 – 87, XII Ano – P. 91 – 109, Número 39 – Navarin Éditeur – Diffusion Seuil.

Este texto foi publicado na Revista Triebuna Freudiana Nº 20, Nov/2014. Nesse ano eu era Membro da Associação Clínica Freudiana.

[2] É consenso entre alguns psicanalistas tais como Charles Melman e Conceição Beltrão Fleig (tradutora de textos e livros deste mesmo autor), não traduzir a palavra rapport (em francês) para a palavra relação (em português). Lacan referencia a palavra rapport a uma questão de proporção, de uma proporção matemática, de equivalência e não de relação, que seria de ligação entre iguais. Ou seja, não há igualdade proporcional no gozo do ato sexual entre o homem e a mulher.

[3] J. Lacan, Escritos, p. 452, A Psicanálise e seus ensinamentos.

[4] J. Lacan, Seminário sobre O avesso da psicanálise, 1969-1970, inédito.

[5] Colocamos a tradução da palavra tédio, em francês – ennui –, para um melhor entendimento do leitor.

[6] S. Freud, Neurose, Psicose e Perversão, PUF.

[7] Scilicet 2/3, p. 90.

[8] Seminário sobre “A relação de objeto”, 1956-1957 (inédito), sessão de 6 de fevereiro de 1957.

[9] Escritos, A ciência e sua verdade, p. 877.

[10] J. Lacan, Posição do inconsciente, Escritos.

[11] J. Lacan, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 159 e p. 178.

[12] Conferências em Roma, 1978, ed. La Salamandre, Milão; – cf, igualmente, Mais ainda.

[13] Seminário sobre Os Nomes-do-Pai, inédito, sessão de 20 de novembro de 1963; – cf. igualmente Subversão do Sujeito e a dialética do desejo, Escritos, p. 823.

[14] J.-A. Miller, Do sintoma ao fantasma (1982-1983).

[15] J. Lacan, Seminário sobre A identificação, sessão de 4 de abril de 1962.

[16] J. Lacan, Seminário sobre O desejo e sua interpretação, sessão de 21 de maio de 1958.

[17] A direção da cura da histérica, Ornicar?, nº 29.

[18] J. Lacan, o Seminário, livro XX, Mais ainda, p. 123.

[19] J. Lacan, Seminário, O sintoma (1975-1976, inédito), sessão de 13 de abril de 1976.

[20] J. Lacan, o Seminário, livro XX, Mais ainda, p. 114.

[21] J. Lacan, Televisão, p. 39.

[22] J. Lacan, o Seminário, livre XX, Mais ainda, p. 123.

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