“Da caverna à caverne”[1]
Aristela Barcellos de Andrades[2]
“Esta manhã, antes do alvorecer, subi numa colina para admirar o céu povoado e perguntei à minha alma: Quando abarcarmos esses mundos e o conhecimento e o prazer que encerram, estaremos finalmente fartos e satisfeitos?
E minha alma disse: Não, uma vez alcançados esses mundos prosseguiremos no caminho.”
Walt Whitman
Iniciar a escrita de um texto não é algo fácil, diferentemente da facilidade de inúmeras ideias que passam e invadem constantemente nossas cabeças sobre o longo e tortuoso texto de nossas vidas. Escolhi esse título para o texto a ser apresentado na pré-comemoração dos 30 anos da antes Clínica Freudiana e atual Associação Clínica Freudiana, para falar um pouco da minha trajetória frente a psicanálise, a qual encontro-me sustentando minha formação e minha clínica.
O que falar sobre 30 anos de instituição, sobre a Associação Clínica Freudiana na cidade de São Leopoldo? Há muito que dizer, porém o tempo é curto para apreciação de tamanho trabalho, do mesmo modo, minha construção nessa instituição se dá há apenas 7 anos. Então, hoje falo brevemente do meu percurso “da formação dentro do curso de psicologia em Santa Maria à formação dentro da instituição psicanalítica ACF em São Leopoldo”, aí se encontra um trocadilho com o título.
Iniciei minha trajetória há 15 anos no curso de psicologia em Santa Maria e a partir do 3° semestre tive Psicanálise I – Freud, estudar sua obra já era um desejo anterior a faculdade e isso só aumentou no 5° semestre em Psicanálise III – Lacan, conhecido como “o terror da psicologia” naquele tempo. No final desse semestre e após estudar um pouco o “Mito individual do neurótico” fizemos uma prova a qual tínhamos que falar sobre o RSI. Tentei de forma curiosa escrever e “explicar” sobre os 3 registros relacionando-os com o desenho animado “A caverna do dragão”; imagino que estejam se perguntando: Como assim? Por quê?
Confesso que me deixei levar pelo discurso dos colegas de outros semestres na epóca, os quais diziam que Lacan era terrível, então eu também não gostava do tal Lacan, nunca tinha lido-o, mas não gostava. Em um dia estava na internet e vi a notícia sobre os jogos de RPG e falavam sobre meu desenho predileto da infância – A caverna do dragão; foi divulgado que o Mestre dos Magos não era o bom da história e que o Vingador e o Tiamat não eram tão maus assim, fiquei surpresa e tentando entender o motivo deles nunca terem conseguido sair daquele maldito parque de diversões. No outro dia, fiz a prova e ao recebê-la de volta, havia atrás da última folha um breve texto de meu professor dizendo que eu teria que estudar um pouco mais, mas estava admirado com a criatividade do texto, e a boa nota foi devido a isso.
Já no último semestre da faculdade, em agosto de 2006, conheci essa instituição na semana acadêmica do curso de psicologia, a qual foi organizada pelo diretório acadêmico em que eu fazia parte, e um dos palestrantes era membro da ACF. Após a apresentação de seu texto e apresentação do livro, seu e de seus colegas, sobre os sonhos, fui procurar na internet para saber que instituição era essa. Após alguns meses, formei-me no final desse mesmo ano, fui convidada a fazer parte de um espaço, na época conhecido como uma instituição psicanalítica, o que discordei quando passei a fazer parte dessa instituição. Durante um tempo fomos convidados a participar de reuniões com pessoas mais experientes na psicanálise e que já faziam parte de outras instituições, para que pudéssemos em um futuro próximo fundar uma Associação Psicanalítica em Santa Maria. Esse mesmo palestrante foi quem fez parte dessas reuniões e trabalhou conosco a ata de fundação e refundação da ACF. Recordo-me que ao final da primeira reunião cheguei em casa e fui procurar o site da ACF novamente e pensei: quando conseguir sustentar minhas idas e vindas “de Santa Maria à São Leopoldo”, farei minha formação lá.
Isso foi em 2007, e em 2010 comecei as viagens em busca de um lugar, lugar esse ao qual pudesse olhar para o meu fazer de uma maneira diferente. Iniciei minhas vindas para São Leopoldo uma vez ao mês aos sábados para participar de um grupo de estudos, após aumentei essas vindas para duas vezes ao mês, para fazer atividades para além do grupo, supervisão, cursos, jornadas. Passados 2 anos iniciei o Laboratório de Psicanálise em 2012 na 7ª edição, nada muito fácil, sempre adaptando horários e me organizando para conseguir dar conta desse desejo frente minha formação em psicanálise. Ao final do laboratório estávamos somente eu e uma colega, e me peguei pensando de forma surpresa que quando ela faltava, aquela aula, hoje eu sei que era para todos – laboratoristas e ministrantes, mas eu achava que era só pra mim, e pensava: – Eles não desistiram, eu não desisti! Difícil sempre foi, o aprendizado foi e continua sendo muito construtivo, mas penso que quando há desejo, vamos à busca.
Na minha carta de proposição, para torna-me membro dessa instituição, falei sobre isso, falei do meu desejo em estar aqui, coloquei no texto um provérbio de Aristófanes que dizia: “Ubi bene, ibia pátria” que significa: “Onde alguém se sente bem, aí está a sua pátria”, e interpretei essa frase e continuo interpretando-a no sentido que ela faz para mim, no sentido de me sentir fazendo parte dessa instituição. Relendo essa carta pude perceber quantas coisas se transformaram e fizeram vez, deu-se novos sentidos e novos direcionamentos a muitas coisas, aos estudos, as relações. Novas transferências de trabalho se fizeram, outras vem se reconstruindo, penso que o importante é estarmos coesos nesse terceiro que se apresenta, o texto, o texto freudiano, o texto lacaniano e seus estudiosos, os quais seguimos.
Indagarmo-nos, questionarmo-nos sobre o desejo de debruçar-se e ser testemunho desse fazer enquanto psicanalistas faz com que nos reposicionemos implicados eticamente frente a nossa clínica, frente ao nosso fazer clínico. Penso que desejo é esse que se faz, que se constrói na função de escuta, nesse lugar do morto? No lugar onde o ser do analista não aparece, no lugar depositário dos fantasmas do analisante?
De que se trata esse desejar quando estamos no lugar que ali faz função tanto para o analista, quanto para o analisante? De que se trata o respeito pela verdade no funcionamento de uma instituição, de uma instituição psicanalítica? Melman (1986), em carta na época da dissolução da Escola Freudiana de Paris, questiona-se: “Se o respeito pela verdade é também essencial para o analista, como preservá-lo no funcionamento da instituição?” e complementa colocando que uma instituição, só se mantém sublimando o lugar mestre do agente (aquele que está no alto à esquerda do discurso) o qual vem a apontar a castração como insuficiência específica do Outro, lugar esse, o do gozo. “Em suma, diversificando a relação Senhor/escravo naquela não menos reacionária, diz Lacan, do cuidante/cuidado, do ciente/cindido, do pedante/pederasta (p. 52)”.
Seguidamente alguém me questiona o porquê venho a São Leopoldo, ou então, – Até quando vai isso, essa “especialização”? Até quando tu vais ir pra lá? Penso que não há resposta que satisfaça muito a essas pessoas, há desejo “simplesmente”, pois há falta, há falta de trocas, há falta de pares, na verdade, parece-me falta de desejo ou de saber o que se quer daqueles que estão a volta. É uma caminhada muito solitária, pois disso, desse desejo não há como dividir, comparar com o do outro, pode-se tentar compartilhar, mas nem sempre dá certo. As pessoas trazem muito em seus discursos a questão da formação em uma instituição psicanalítica estar ligada ou ser parecida com uma formação acadêmica de pós-graduação, penso: – Como explicar isso? Se entende-se a formação psicanalítica como uma construção, podemos tentar pincelar de que se trata tal questão. As pessoas trazem esse tipo de dúvida, entre tantas outras, mas como se fosse como algo finito, que logo tem um fim, e que logo comece outra coisa, como uma formação acadêmica.
Lebrun expos em recente conferência datada em 01/04/2017, sobre o desejar e disse:
Esse é o eixo da ciência, anteriormente, era, sobretudo, no eixo do desejo. Então, tomar a clínica no eixo do desejo, que ia de par com a questão do conflito psíquico, justamente após o enfraquecimento dessa apropriação simbólica, no momento de hoje, é mais o real do gozo que está em questão. O diz de uma forma simplista: ontem, como é que nós podíamos nos haver com os desejos contraditórios, essa era a questão da clínica de ontem. Hoje, se trata mais de como sustentar o desejo na medida em que se está absorvido no gozo, toda a questão do corpo, de como isso se dá no aparelho psíquico, é importante esse ponto do deslocamento do eixo, desse eixo. As pessoas hoje não vêm mais falar da questão conflitual do desejo, mas vem perguntar justamente o que é desejar? Será que ainda tem esse lugar para o desejar? O que eu faço para conseguir desejar um pouco? É justamente por esse aspecto que a adição se tornou enorme, imensa. E quando a adição é a palavra mestre no psiquismo de alguém, a questão é como poder lhe dar um pouco de espaço para poder desejar, porque ascender ao gozo não é desejar.
Essa questão que Lebrun traz, faz-me pensar na diferença da universidade para a instituição, ou seja, na academia parece-me que há um gozo, muitas coisas prontas, estuda-se, faz-se provas, recebe-se a nota e se forma. Já na instituição quem a procura, acredita-se que algo lhe falta, estuda-se, discute-se os textos muitas e muitas vezes, mas não há nota, não há formatura, permanece aquele que experimenta o lugar de desejar.
Roisin (2002) coloca que é no “Che vuoi?” no “O que queres?” em que Lacan trabalha no Seminário VI, que esse seria o ponto chave, “o ponto de partida da inscrição significante” (p. 196). A partir daí, da fala do sujeito, na presentificação da hiância na enunciação do sujeito, no divã, nesse leito onde as fantasias tomam forma, onde os desejos decorrem em turbulentas águas revoltas é que o desejo do analista se suporta, onde se sustenta estar em uma instituição. E Chemama (2002) complementa que quando se sai do lugar de espera de reconhecimento, da espera de algo pronto, pode-se então experienciar a possibilidade de trabalho em conjunto, a possibilidade de se fazer pares, a possibilidade de construir esse fazer. Dorgeuille (1986) diz:
Essa relação dos analistas com seu discurso não pode ser de indiferença, pois o valor concedido a seu ensino, como a retomada que pode ser feita dele cada um por sua própria conta ficam suspensas no modo segundo o qual cada um é muito singularmente afetado. Estamos aí como antípodas de qualquer discurso universitário. A função de psicanalista supõe inextrincavelmente misturados os dois elementos que a constituem, a sustentação da experiência, por um lado, sua elaboração, por outro. Dissociá-las equivale a colocar em causa a existência do psicanalista, da possibilidade mesma de assumir uma tal função (p. 133).
Chemama (2002) traz ainda em seu texto “O destinatário” a relação da psicanálise e o término de análise, a falha existente no sujeito a partir de sua fala. A falta de garantia que há em toda e qualquer palavra, onde o sujeito pode então assegurar-se, pode então sustentar o seu ser? Pode sustentar-se a partir do objeto a, do objeto causa de desejo, este que faz corte e que cai. Penso na questão da formação, o que nos sustenta, o que faz com que permaneçamos? O que nos assegura, senão a descontinuidade desse objeto causa de desejo, esse desejar, esse sentido que se transforma e faz borda em nosso fazer clínico.
Finalizo meu texto repleta de questões, repleta de trabalho frente a essas questões, e tentando compartilhar com vocês um pouco do sentido que tentei construir ao colocar esse título. Segundo o dicionário de francês Le Petit Robert (2013) “caverne” significa: cavidade natural escavada, profunda na rocha, uma gruta, já caverna segundo o Dicionário Aurélio (2009) significa grande cavidade no interior da terra, cavidade subterrânea. Penso que “Da caverna à caverne” diz de um caminho, de uma trajetória sempre sendo percorrida, traçada, lapidada. Como diz o poema de Whitman: “…uma vez alcançados esses mundos, prosseguiremos no caminho!”. O desejo permanece em suas constantes mudanças, em aprender mais, a buscar mais, esse desejo não cessa, muito pelo contrário, só aumenta, a cada passo se lapida mais…
Minhas idas e vindas duram atém hoje, fui e voltei várias vezes, passei por cidades, conheci pessoas, fiz maravilhosas amizades, viajei, realizei sonhos, passei a falar em lugares onde antes não conseguia, enfrentei medos, briguei, estudei muito, venho sustentando minha palavra aqui na “caverne”, na gruta e continuarei a fazer tudo isso, pois lapidar leva tempo, amadurecimento leva tempo. Não é à toa que a Associação Clínica Freudiana está aí há quase 30 anos! Quero parabenizar os colegas que fundaram e refundaram essa instituição, que estão sustentando seu desejo e seu fazer há 3 décadas na ACF. Obrigada pela referência que são em meu caminhar na Psicanálise!
Referências Bibliográficas:
CHEMAMA, Roland. O destinatário. In: O passe: reflexões. Recife: CEFR, 2002.
DORGEUILLE, Claude. À guisa de conclusão provisória. In: A segunda morte de Lacan. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa. Curitiba: Ed. Positivo, 2009.
LEBRUN, Jean-Pierre. Conferência: A psicanálise e o mundo contemporâneo de um mal-estar a outro. Em 01/04/2017, para a Extensão: Psicanálise em Tempos Desvairados / UNISINOS – São Leopoldo.
MELMAN, Charles. A instituição e a verdade. In: A segunda morte de Lacan. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.
ROBERT, Paul. Le Petit Robert. Dictionaire alphabétique et analogique de la langue française. Paris: LeRobert, 2013.
ROISIN, Jacques. Da psicanálise como criação. In: O passe: reflexões. Recife: CEFR, 2002.
[1] Texto apresentado no Curso da ACF: A psicanálise em São Leopoldo 30 anos de ACF, no dia 08/07/2017.
[2] Psicanalista e Membro do Salpêtrière Espaço Psicanalítico; durante a escrita desse texto eu era Membro da Associação Clínica Freudiana.