Aristela Barcellos de Andrades – Psicóloga, Psicanalista Membro Fundadora do Salpêtrière Espaço Psicanalítico.
A “lagosta” nossa de cada dia
Após assistir ao filme Pobres Criaturas resolvi escrever sobre o impacto que ele me causou. Alguns dias após eu ter ido ao cinema, uma colega sugeriu que eu escrevesse algo sobre essa obra e trouxesse a minha leitura frente a psicanálise diante da mesma, mas isso está sendo feito em outro texto.
Fiquei tão impactada com a direção do grego Yorgos Lanthimos que fui procurar mais filmes sob sua direção, encontrei 2 deles na Netflix: O Lagosta e a A favorita. Assisti ao primeiro em 3 partes, e, por que fiz isso? Pelo simples fato de que algo ali me incomodava, olhava um pouco, parava e depois retomava. Quando faltava 1 hora e 5 minutos para terminar o filme resolvi me sentar no sofá e assistir até o fim. Foi surpreendentemente maravilhoso, de fato, é uma verdadeira imagem da realidade atual a qual vivemos ou que já vivenciamos há séculos.
Na minha leitura, o filme trata de uma severa crítica aos relacionamentos, inicialmente pensava que era mais específico aos solteiros, devido a forma como começa o filme. Mas passado algum tempo e, divagando sobre o mesmo, penso que seja aos casados, aos solteiros e, consequentemente, a todos os tipos de relacionamentos que essa crítica se encarrega. Mas vamos ao filme então…
A trama desse longa-metragem começa numa sociedade em que não se pode estar solteiro, todavia, caso você esteja, será levado a um hotel onde terá 45 dias para se casar com alguém e ser considerado um sujeito “normal” nesse habitat. Ali há regras nítidas, não se pode ter uma união homoafetiva, como também, não se pode transar antes de estar com alguém em definitivo, até porque a vida a dois é perfeita (ironia minha), mas é necessário ter alguma afinidade com alguém, coisa que não discordo. Caso não encontre a sua alma gêmea nesses 45 dias você será transformado em um animal de que tenha apreço, bizarro não? Porém, real! Quem já não ouviu: “o fulano ou a fulana deve ter algum problema, pois não casou até hoje!”, isso é considerado um grande problema em nossa cultura e essas pessoas são vistas como Ets, e, nessa película isso não é diferente, há consequências tão bizarras quanto o motivo disso tudo.
Durante os 45 dias há atividades para as pessoas se conhecerem, dentre elas, encontros no jardim, esportes, bailes, jantares onde homens e mulheres convivem. Em todas essas atividades as roupas das pessoas são iguais, todos usam roupas em ton sur ton azul, homens de terno e mulheres de vestido. Em algumas noites aleatórias todos são levados a uma caçada na floresta onde alguns sujeitos são mortos pelos seus colegas de convivência, diminuindo assim, a possível concorrência. Todos os dias acontece a mesma coisa… o dia inicia com uma voz vinda de um aparelho dentro dos quartos acordando as pessoas, nos quartos masculinos as camareiras sentam no colo dos homens em cima do pênis destes ainda de cueca e elas de calcinha os estimulando sem finalizar o ato; eles se vestem e vão tomar café, fazem algum esporte dito da alta classe como o golfe, por exemplo, ou natação, e conversam entre si, sendo essas atividades ao ar livre num momento propício de se conhecer alguém.
Algumas pessoas desesperadas tentam encontrar algum meio de se juntar a alguém, um dos rapazes, por exemplo, passa a bater sua cabeça em algum lugar para que o seu nariz sangre, e consequentemente, ele se casa com uma moça que sempre tem sangue escorrendo de seu nariz. Após tamanha “afinidade” ser percebida pela moça, ambos se casam. E no dia da união que é feita na frente de todos, a dona do hotel diz que caso haja alguma intransigência entre o novo casal, será lhes entregue um filho para que as coisas melhorem. Confesso que ri muito nesse momento, pois a grande solução dos casais que não conseguem lidar com suas desavenças e, não se separam, é terem um filho, o que de fato, não é surpresa não é mesmo? Claro que isso não acontece com todos os casais, mas muitos se utilizam dessa resolução. Em outra cena uma moça de cabelos loiros brilhantes e sedosos onde esse era sempre o comentário dela mesma sobre os seus cabelos, chega em uma reunião com a diretora e dona do hotel, casada obviamente, e mais a sua melhor amiga, para receber a notícia de que seus dias se encerraram e ela será transformada em um animal. A melhor amiga que não tem os cabelos loiros brilhantes e sedosos lhe lê uma carta falando de seus sentimentos, essa mesma com um certo olhar de satisfação em seu rosto que era percebido em seu tom de voz, falava da amizade das duas, e o quanto sentia muito pelo desfecho disso tudo. Todavia, a “feia” sortuda casou, mas levou um tapa na cara de total indignação da “linda”, pela injustiça do mundo para com ela, pois somente as “Barbies” amam! Risos, hoje estou me sentindo irônica. Esse filme é um retrato nu e cru do que vivemos hoje e me parece que não há muita evolução do que se viveu há anos.
No decorrer da trama, alguns desses sujeitos resolvem fugir desse hotel para poderem ser livres na floresta ao redor desse ambiente. Porém, quando um dos protagonistas consegue fugir poucos dias antes de se tornar um animal, que foi o que aconteceu com o seu irmão que se transformou em cachorro, ele se depara com um lugar onde a liberdade tem seu preço e suas regras também, ou seja, na floresta não se pode ficar com ninguém, e para cada infração haverá uma drástica penalidade. Então, ele conhece uma mulher e com o passar do tempo, ambos demostram terem afinidades um com o outro, vão se conhecendo, conversando durante as caçadas de sobrevivência, vão gostando um da companhia do outro e criam uma forma de estarem juntos sem os líderes desse bando perceberem. Infelizmente, em um certo momento, a chefe percebe a forma como eles combinavam seus encontros, onde a comunicação através de suas mímicas e olhares os levavam. Adivinhem quem sofre a penalidade… se você respondeu que foi a mulher, acertou (palmas), mas isso não é difícil não é mesmo? São sempre as mulheres, mesmo que estejamos em 2024. Se não querem spoiler, parem de ler por aqui, não contarei o fim do filme, mas comentarei sobre uma parte importante. Seus olhos são furados, tirados, seja lá o que for, ela não podia mais ver o seu grande amor, a partir desse momento não poderiam mais combinar seus encontros ou flertarem um com o outro. O que lhes resta? Fugirem de novo… para se tornarem iguais naquilo que permaneceu em suas concepções, juntando um pouco dos dois mundos. Pelo menos foi essa a leitura que fiz no final do filme, pois me impactou também como se deu o desfecho. Mas pode se ter outras conclusões, sem sombra de dúvidas.
Sendo assim, o lugar que a sociedade nos coloca ou nos julga parece o mesmo como comentei há pouco, as mulheres sempre fazem sacrifícios ou estão tentando fazer menos e terem mais dignidade, mas isso não é de uma forma tranquila, pois há julgamentos vindo de todos os lados. Ser solteira é um problema, pois é considerada sem valor, pois “ninguém” a quis, ou é puta e vagabunda e trepa com todo mundo, é solteirona e que está incluída no sem valor. Ser casada é porque estava desesperada e não sabe viver sozinha, o importante é ter um homem mesmo que se seja um traste, engravidou ou pressionou o cara para ele casar. De ambos os lados o feminino entra em pauta sempre, ambos os lados se criticam e tentam defender suas escolhas com unhas e dentes para ver quem ganha uma disputa que nem existe, é totalmente ilusória e, acabamos em espetáculos públicos como nas arenas em Roma (Coliseu). Lacan disse que “amar é dar o que se tem a quem não o quer”, damos o que temos a um outro que não nos pediu isso, pode parecer cruel, mas é uma verdade. Consequentemente, tentamos encontrar e, mesmo que não procuremos, gostar-se-ia que alguém pensasse: olha posso compartilhar isso aí, ou seja, essa ideia daquilo que o outro me oferece, posso vir a gostar e também demonstrar algo meu aí, e o outro curtir. E quando esses “algos” tem a oportunidade de serem vivenciados e suportados um pelo outro, talvez possa haver algo de fato e conviver de uma forma saudável e agradável. Chama-se isso de respeito, reciprocidade e responsabilidade consigo e com o outro.
Vivemos no hotel da vida, se entramos há regras e, se saímos há regras também, o que fazemos em cada lugar e posição psíquica em que nos colocamos é outra coisa. Para toda ação existe uma consequência, mesmo que fiquemos parados e em silêncio, o carrossel da vida continua a girar. Nossas escolhas são nossos guias, se escolhemos sempre do mesmo e temos sempre o mesmo resultado, o que faz permanecermos? Se nesse hotel não nos sentimos bem, então mudemos nosso roteiro e nos hospedemos em outro lugar, desde que nos sintamos bem, solteira ou casada, isso não interessa, pois o que vale é a nossa paz interna e isso irradia em qualquer lugar, sozinha ou acompanhada! Viva aos diferentes caminhos e trajetos da vida e aonde nós nos permitimos percorrer!