E o que você tem a ver com isso?
Aristela Barcellos de Andrades, Psicóloga, Psicanalista e Membro Fundadora do Salpêtrière Espaço Psicanalítico
“Há sempre algo de ausente que me atormenta…”
Camille Claudel (Carta para Rodin em 1897)
Resolvemos iniciar um ano diferente, um novo ano em vários sentidos e em nosso trabalho não poderia ser diferente. Dei-me conta em análise de algo óbvio, mas não era tão óbvio assim até o momento em que falei e que dei um novo sentido a isso, ou seja, dei-me conta de que na maioria das vezes ouvi, estudei e falei do feminino por uma ótica, por um olhar e por palavras do masculino, homens falando e escrevendo de/e sobre mulheres. Quase tudo ao nosso redor e em nosso trabalho estava vinculado ao masculino. Então, resolvemos abrir as portas e colocarmos um tapete vermelho a esse novo momento, a um novo olhar, um convite a nos olharmos, a nos vermos através do feminino, ou seja, mulheres falando sobre mulheres.
Fizemos modificações naquilo que tange de forma direta o nosso trabalho. Hoje quem trabalha diretamente conosco são mulheres, com seu olhar firme e forte, porém delicado; a doçura vem tomando conta, todavia, não somos o sexo frágil, nem burras, nem putas, muito pelo contrário, soltamos a nossa verdade e a nossa vontade, abrimos alas a nossa liberdade, julguem como quiserem e desejarem, mas as grosserias, preconceitos, racismos, misoginias quem deve tratar isso são aqueles que as tem!
Não cedamos mais as agressividades, as injustiças, aos maus tratos, a perversidade, a manipulação, sejamos nós mesmas, independente do que os outros pensem. Acredito que esse espaço, além de podermos falar o que pensamos, é também um espaço para compartilharmos com quem participa do nosso cotidiano tanto pessoalmente quanto profissionalmente, como também, com quem vem conhecer a nós e ao nosso Espaço, falamos de nós, do nosso fazer, do nosso particular, pois nossa fala diz do singular de quem somos.
Como a cada dia nossa verdade se transforma, nossa ideia a cada encontro também se aperfeiçoa, muda o caminho, acrescenta-se e tira-se algo, a cada escolha renunciamos a uma outra. Sendo assim, que possamos então, conversarmos sobre o que toca a cada um (a) de nós a partir da temática escolhida.
Ainda não havia me decidido para que grupo de trabalho seria esse ensaio, mas no decorrer da escrita acredito que isso se esclareceu. Pensar em escrever sobre as mulheres da psicanálise, da arte de um modo em geral não é a novidade, a diferença é nos permitirmos a fazer isso de forma que não seja pelas leituras e olhares do masculino dentro do mundo psicanalítico, o que ocorre na maioria das vezes. Vou contar uma breve situação que aconteceu comigo para introduzir sobre o que falarei aqui. Há um tempo atrás, um homem me adicionou no Linkedln, fui ver quem era, não o conhecia, e vi que ele era psicanalista, morava em Milão na Itália e era membro de uma instituição psicanalítica de lá, a qual não citarei aqui. Enfim, aceitei o convite e ele começou a conversar, achei no meu imaginário que ele falaria sobre psicanálise, o que me enganei profundamente, ele começou a dizer que queria conversar, me deu muitos elogios sem me conhecer, achei estranho e disse que mais tarde conversaríamos, isso foi no meio da tarde para mim, e para ele 4 ou 5 horas a mais no fuso horário se não me engano. Como disse antes, achei a conversa esquisita, porém não me prendi a isso. Mais tarde ele veio falar novamente e eu disse que estava achando estranho tudo aquilo e que não gostaria de falar, então ele perguntou se eu havia mudado de ideia, disse a ele que estava cansada e não concordando com aquela discussão, pois nem o conhecia para tamanha insistência, eis então que ele disse: – És uma “histérica”! Acabei rindo na hora, possivelmente de nervoso, e bloqueei-o nessa rede social, e comecei a pensar na loucura estabelecida naquele momento, ou seja, pela psicanálise dele fui diagnosticada como histérica, pois não aceitei conversar com ele na hora que ele queria; para ele sou histérica por não fazer o que ele mandou, pensou, sugeriu, vendo pelo senso comum; para ele sou histérica, por ter mudado de ideia frente ao comportamento dele, teria que ter aceitado essa forma em que ele se apresentou em questão de minutos e achar o máximo. Mais um enfim nesse parágrafo, enfim, fui diagnosticada ou censurada ou desrespeitada, ou todas essas palavras juntas por dizer minha opinião, por decidir não aceitar aquilo e daquela forma. Tinha pensado será que foi um mal entendido? Coisas que ainda passam pela nossa cabeça, mesmo que hoje sejam por segundos, mas será que não errei? Claro que não!! Fui quem eu sou e ponto, como também, não queria aquela conversa esquisita e todo desrespeito que vinha junto com ela e a galope!
Decidido então, e vou trazer aqui no Sarau Poético, de forma breve, um pouco da história de Camille Claudel, pois merecia horas a fio de uma belíssima conversa sobre tudo o que ela fez e como se deu a sua vida. Para quem não a conhece Camille Claudel foi, ao meu ver, uma das mulheres mais fabulosas e injustiçadas do final do século XIX na França. Dona de uma genialidade precisa comparada a Freud, Einstein, Lacan e de uma habilidade sem igual ao esculpir o mármore, porém considerada louca. Nasceu no dia 8/12/1864 em Villeneuve-sur-Fère em Tardenois na região de Ardennes, próximo a Paris. Desde muito cedo Camille se demonstrou bastante afastada das expectativas socias da época e com uma personalidade para além de seu tempo, as suas leituras de cabeceira eram Goethe, Shakespeare, Victor Hugo, como também, era uma assídua frequentadora de reuniões na casa do poeta Mallarmé com os intelectuais franceses da época. Ela era autodidata e aos 15 anos de idade já era notada por seus trabalhos com argila, sendo aconselhada pelo escultor Alfred Boucher a ir a Paris onde ela então, começou a frequentar a escola de artes Academia de Colarosi, dividindo seu primeiro ateliê com mais 3 colegas inglesas. O diretor da Escola Nacional de Belas Artes se impressionou muito com a habilidade de Camille, apesar de tê-la criticado e a achado fora dos padrões e pensou que ela já conhecesse então, Auguste Rodin, mas ela nem sabia quem ele era. E é aí que começaram os problemas…
Quando se conheceram, Rodin com 40 anos de idade, considerado o “psicólogo do mármore e o escultor da expressão psíquica”, e Camille com 17 anos, tornou-se sua primeira e única discípula. Rodin foi reconhecido pelos impressionistas da época, apesar de muito criticado pela forma anticonvencional de esculpir, já Camille, a mulher considerada ser a responsável pela fama dele. Ela deu vida a Rodin, o instigou ao trabalho e ele assinou o trabalho dela, assassinando-a como sujeito e mulher.
Quando fui pela primeira vez a Paris fui visitar o museu Rodin, e andando pelas galerias pude perceber obras esculpidas de forma diferentes e mais tarde fui perceber que lá estão as obras tanto dele quanto as de Camille. Essa diferença se encontra na forma de esculpir, o trabalho dela, o seu traçado, o desenhar das marteladas, o esmerilhar, a moldagem, o polimento, traz algo ao meu ver, de mais real, numa fusão entre a imagem e o sentimento envolvido naquilo que é nomeado a obra. Ao ver as obras o nosso imaginário voa, sente e sofre junto, já o trabalho de Rodin, é o mármore esculpido de forma técnica, muito bonito, porém, frio e sem sentimento. Da mesma forma, que foi a relação deles me parece. É aí que entraremos, nisso que já venho falando em outros textos, a forma de amar no mundo, como cada sujeito se coloca nessa aventura, nessa forma de ser e de viver em relação a si e ao outro.
Rodin era casado e Claudel se tornou sua amante, o que a levou a sofrer muitas críticas e preconceitos por parte da sociedade “conservadora” da época, dificultando dessa forma, o contato dela com outros artistas. Além disso, Camille no meio desse furacão sofreu um aborto, afastou-se de Rodin, apesar de querer se casar com ele. Além das questões de cunho pessoal, ela sofria frente ao reconhecimento de seu trabalho, pois ela esculpia e quem assinava a obra era ele. Segundo relatos e já comentado anteriormente, ela o fez reviver, mas também o criticava, por suas atitudes e a forma de trabalhar, ele por sua vez, não sabia e não queria lidar com as críticas e com as mudanças de humor dela em relação ao contexto em que viviam.
Após o afastamento entre eles, Claudel passou a valorizar outras formas para a sua arte e parou de trabalhar com o nu rodiniano. Passou a se sentir insegura e em grande solidão, da mesma forma, que a ter crises cada vez mais severas consigo e com sua obra. Em 1905 foi seu último ano de produtividade com a obra Nióbida Ferida [1], sendo essa a sua despedida, após essa produção ela passa a destruir suas obras esculpidas durante o ano e pedia que as mesmas fossem enterradas. Da mesma maneira, começou a apresentar, segundo relatos, ideias delirantes de que estaria sendo plagiada e roubada inclusive por Rodin, o que de fato ocorria de forma velada quando era ele quem assinava suas obras e recebia o reconhecimento. Essa traição de Rodin, ao não ter reconhecido a genialidade da obra dela, e ao ter escolhido permanecer em seu casamento causou um enorme corte na expressividade de Camille enquanto mulher e artista.
No decorrer do tempo, suas crises foram consideradas cada vez mais fortes e ela foi internada aos 44 anos, dois dias após a morte de seu pai com quem tinha um melhor relacionamento do que sua mãe. Ficou reclusa por 35 anos até sua morte aos 79 anos de idade. Foi diagnosticada com psicose paranoide pelos psiquiatras de Montdevergues, porém, os ditos certificados de situação da época trazem relatórios diferentes e não oficiais de psiquiatras expondo o contrário de tal situação.
Ela se sentia exilada e abandonada pela família, sofreu um deterioramento físico e psíquico estando praticamente sozinha. Seu raciocínio mostrava sua genialidade, mas seu amor e dedicação foram destroçados por um sujeito que se incomodava quando ela se demonstrava “independente e desobediente” [2] dizendo que estava agitada demais e não sabia porque ele teria de escolher entre a esposa e a amante.
A obra de Camille demonstra uma imensa magnitude, o ser ali exposto em sua forma mais genuína, porém visto com um olhar aterrorizador, moralista entre tantos outros adjetivos pejorativos. A incapacidade de olhar para a obra dela e ver, como também, sentir o que seu trabalho transmitia a levou a um hospício por uma boa parte de sua vida. O desamparo, o desrespeito a levaram a morte, primeiramente psíquica e depois física. Ser incompreendida lhe trouxe sofrimentos considerados loucura. Um diagnóstico é dado quando se quer nomear algo que causa medo a quem ouve e a quem convive, e isso faz com que ali se negue, se sufoque e finalmente, se apague o sujeito existente. Ali existia um sujeito que não teve espaço de ser quem era, onde sonhos e desejos foram cortados no âmago da raiz de onde brotava quem de fato ela era. O valor dela estava em seu esculpir, em fazer o mármore transmitir o que ela de fato ali era e existia, e o dele a receber aplausos, a ser um famoso escultor. Sim, ele foi um grande escultor, mas o valor dela e de seu trabalho foi ofuscado pela fama e pela perversidade dele.
A genialidade está em sua obra, a injustiça no não reconhecimento estabelecido por uma cultura e sociedade conservadora da época e que não tem muita diferença nos dias de hoje. Ela se fez apaixonar, ele não sustentou, ela tentou, mas será que foi da melhor maneira? Talvez não, porém ele não cumpriu com o prometido, com o combinado, com o acordado entre eles, alguma novidade nos dias de hoje, após 1 século? Não, hoje continuamos a viver numa luta que ocorre há muito tempo, mas a sociedade ainda continua repetindo algumas coisas, e não contente, agora surge uma nova tropa do absurdo e da escrotice chamado “Redpil” onde o machismo e a misoginia triunfam na Síndrome do Idiota Confiante. Isso não é nada diferente do que passou Claudel, a questão não era a possibilidade de alguma patologia vigente, a questão era a sua genialidade ofuscada pela escrotice da época e do machismo de um homem inseguro, onde ela esperou ser “valorizada como mulher e legalizada como esposa e artista” (p. 94)[3].
Ele teve fama, ela teve o seu fim de forma trágica definhando quando entregou a sua vida ao amor de um homem que não a respeitou. Vida e obra se mesclam e sofrem juntas a injustiça da sociedade de uma época. Mas seus ensinamentos, sua vida, sua genialidade permanecem até hoje para que possamos olhar para isso e fazermos algo, tendo a convicção de que ninguém tem nada a ver com isso!!
Obrigada!!
[1] RIVIÈRE, Anne. L’Interdite – Camille Claudel 1864 – 1943. Paris: Editions Tierce, 1983.
[2] WAHBA, Liliana Liviano. Camille Claudel – Criação e Loucura. Rio de Janeiro: Record, 1996.
[3] WAHBA, Liliana Liviano. Camille Claudel – Criação e Loucura. Rio de Janeiro: Record, 1996.