A Escrita de Outra Cena
Rosane Wojciechowska Lucena, Psicanalista, Servidora Pública no Sistema Prisional do Estado do RS.
Para além das apresentações formais, cabe me apresentar como uma mulher que se aproxima dos seus quarenta anos, ao longo desses, vem ocupando espaços na sociedade a partir diversos papéis e funções e sendo atravessada constantemente por esses. Afora isso, o que de alguma forma transgride em mim, enquanto meu ser, corpo, e expressão, deste lugar que falo, aprendi a transbordar em palavras. Sou uma mulher que escreve.
O que me movimenta para a escrita são as minhas afetações. Observo que a cada artista ou expressão artística caberá o recorte de um sentir, de um pedaço sensível e o contorno de um momento. Como um presente embrulhado, enviado a remetente desconhecido.
Na mediação do encontro sobre Salvador Dalí pude falar sobre esse encontro singular, quando conduzido pela arte, que além da contribuição simbólica, valoriza a linguagem artística como fundamental no processo histórico-social e subjetivo do ser humano.
A fim nos movimentarmos para uma possível compreensão do ser humano enquanto um ser social, estaríamos nós analistas, voltando nosso olhar para a arte como estratégia de saúde, como inscrição enquanto ser-sujeito, e não como fuga da realidade.
No encontro com a arte somos conduzidos lentamente, e por vezes, de maneira imperceptível a uma Outra Cena, propondo um movimento sutil, mas, ao mesmo tempo, poderoso, podendo aqui propor uma comparação com a mudança de posição subjetiva proporcionada pela entrada em análise.
Seguindo neste ritmo, faço alusão ao objeto de trabalho do analista, tendo a palavra do sujeito em análise como matéria prima, acolhendo em conjunto suas ilusões e fantasias, tendo como norte o real, pois a realidade é sempre psíquica, é a realidade da fala do analisando, portanto singular.
Já no encontro com a arte há um movimento onde se assume a ilusão, ou ficção, a relação com esta, em certa medida se encontra fundida na ilusão, imaginação, em um movimento onde diferenciar verdade ou faz de conta, não fará diferença.
Tanto no movimento poético, quanto nas pinturas de Frida Kahlo resgatamos um pouco da experiência lúdica, inerente ao que nos torna humanos, acolhendo os temores, os traumas, o onírico e vivendo esta experiência única como linguagem também terapêutica. Essa experiência viva, orgânica e potente, pode nos auxiliar no movimento de aproximação intenso das nossas questões, rememorações, sonhos, traumas, conquistas. Um (re) encontro com o que faz eco e por sua vez aguarda espaço ou forma.
Ainda em tempo separei um poema de Conceição Evaristo para finalizar minha participação no dia de hoje. Um sarau poético em espaços como esses proporcionados pelo Salpêtrière reforça em mim a responsabilidade desse “dar ouvidos” ou emprestar “voz” a personalidades tão importantes como: Conceição Evaristo, Fernando Pessoa, Frida Kahlo, Salvador Dalí… e ocupamos com seriedade e honra os diálogos possíveis a partir de produções brilhantes que sobrevivem ao tempo e inclusive a nós mesmas.
Conceição Evaristo é uma escritora brasileira, contemporânea, mulher negra nascida em Minas Gerais em 1946. Trabalhou como empregada doméstica, se tornou professora e fez faculdade de letras. Em 1990 publicou seus primeiros poemas. Escreve romances, livros de contos, poesias.
VOZES-MULHERES
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brandos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
ruma à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhei em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.[1]
[1] Referências. EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. 3a ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017. FINNEGAN, Ruth.