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Sarau Poético – Texto 1: Destino – Agora eu sei

Destino – Agora eu sei[1]

Aristela Barcellos de Andrades[2]

“O amor, é dar o que não se tem a alguém que não quer”[3]

Na data de hoje fazemos o encerramento das atividades de 2022 do Salpêtrière Espaço Psicanalítico e como de costume isso ocorre através de um Sarau Poético juntamente a queridos amigos e colaboradores do nosso Espaço, sendo essa a sua 4ª edição. Para esse momento pensamos em fazer uma retomada dos saraus anteriores onde cada um pudesse escolher a temática que mais lhe agradasse e a partir disso é feito o convite a refletirmos, cada um ao seu jeito, ao seu tempo e com suas questões, pois não se trata de um seminário, mas sim de uma boa conversa.

Inicialmente pensei em falar sobre o que conversamos no Sarau sobre Frida Kahlo e sua obra do ano passado – Com a palavra Frida Kahlo, porém, há um tempo, estava procurando no streaming do Disney Plus algo para assistir, gosto muito de filmes antigos e eles vem retomando essas filmagens o que muito me agrada. Enquanto procurava encontrei um curta-metragem animado que iniciou a sua produção em 1946, e foi lançada pela Disney, por Roy E. Disney em 2003. Essa produção começou com a parceria entre o pintor espanhol Salvador Dalí e Walt Disney. Essa animação surrealista de aproximadamente 6 minutos chamada Destino[4] narra a história do desafortunado amor entre Chronos e a mortal Dahlia. Dessa forma, resolvi trazer algumas das minhas impressões e compartilhar com vocês sobre o que esses artistas transmitiram e aquilo que fez sentido para mim nesse momento, então, transcorro aqui de Dalí e Frida ao amor.

Ovídio diz que “o amor é coisa cheia de terror inquieto”[5] e quão inquieto e devastador parece ser, pelo menos é o que encontramos em clássicos literários e em filmes, como também, na vida real, em que através da tragédia se demonstra que ali houve um grande amor… costumo me perguntar o porquê disso, o porquê dessa constatação? Por que precisa ser tão duro assim? O que se quer com tanta dor? Jean Allouch traz seu entendimento da famosa frase de Lacan tão emblemática, pelo menos para mim, “O amor, é dar o que não se tem a alguém que não quer”, e diz: “Amar, segundo Freud retomado aqui por Lacan, é dar, e dar¸ aquilo que se tem. Esse precioso objeto que detenho, por amor por você, a teu pedido, eu te cedo. Amar é satisfazer um pedido e a ele responder por outro pedido: Peço-te que aceites o que te ofereço, porque é bem isso que tu me pedes. Amar é se sacrificar, ‘se’, pois o excremento nesse dom de amor e por amor, tem o valor de uma parte de si que, como tal, é si. Amar é separar-se daquilo que se é como objeto, aceitar que esse objeto-si desapareça na fossa comum, o amor recebido em troca… oferecendo ao donatário a promessa de que pode ser amável sem isso, de que, portanto, não é, ao contrário do que sente, redutível a isso ou à posse disso (pg. 33)”[6]. De certa forma, continua emblemático… risos, te ofereço o que me pedes e mesmo assim não queres e quando não quero mais oferecer, me imploras pelo o que te havia dado, até sem mesmo me pedires…doido não? Para que essa trabalheira incessante de implorar por migalhas? O outro tem todo o direito de não nos querer, porém, é cabível não nos querermos em prol da confusão, instabilidade e muitas vezes perversidade do outro? Então…

Voltemos ao nosso curta citado no início desse ensaio, ao qual traz uma bela canção, uma deliciosa balada espanhola do compositor mexicano Armando Dominguez chamada Destino, ou em inglês My Destiny of Love, interpretada por Dora Luz, onde mostra uma linda e triste dança entre uma mulher e o tempo, onde essa mulher dança de forma magnífica, leve, elegante, corajosa, ela se despe e se veste, desliza, se enrola e se desenrola para encontrar seu par, porém o tempo, se desfaz a todo instante, aparece e desaparece, fica parado e anda com pressa e a hora certa nunca chega, os olhos se cruzam de relance, se olham por instantes, mas nunca estão no mesmo lugar. Cada um oferece aquilo que tem, se desvanece em possibilidades de tentar encontrar o outro nem que seja por milésimos de segundos, mas esse tempo não se sustenta, pois cada um tem o seu tempo, cada um está em seu tempo, portanto, ambos estão em tempos diferentes, dançando outras coreografias, escutando outras músicas.

Dalí nos mostra isso através de sua pintura surrealista, onde cada sujeito vê aquilo que quer e o que pode e em seu próprio tempo ou quando lhe convier. Sempre quando leio algo sobre Frida e sua forma de amar e sobre o seu amor por Diego, me questiono o porquê disso, o porquê dessa forma de amar? Acredito que ela tenha sofrido muito mais por amor do que pelas duras e intermináveis dores físicas das lesões em seu corpo. Como se entregar daquela forma a alguém que lhe dava tão pouco em troca? Ela presava a lealdade e não a fidelidade, isso me toca e me chama muito a atenção, ser leal é muito diferente do que ser fiel. Você pode ser fiel a um corpo, a um contrato e não ser leal ao amor por essa mesma pessoa e vice-e-versa. Esses tempos encontrei uma frase dela que dizia o seguinte: “Tínhamos formas diferentes de querer… ele me dava o que sobrava, e eu dava a única coisa que eu tinha”. Tempos, formas, e amor em momentos muito opostos, muito diferentes e quando ela estava prestes a morrer ele se deu por conta do que era tudo aquilo. Vemos em muitas biografias e histórias de amor onde uma das partes sempre se entrega muito para além da conta e o outro muito pouco, um lado é leal e o outro é fiel somente a si mesmo, tais como: Romeu e Julieta, Ofélia e Hamlet, Sartre e Beauvoir, Callas e Onassis, Kennedy e Jacqueline, o mesmo Kennedy e Marilyn, Hanna e Heidegger, Garrincha e Elza, dá para citar tantos outros, mas esses já me parecem suficientes para refletirmos um pouco. A conta não fecha, é injusto o peso da balança ser somente para um dos lados em questão.

Que amor é esse em que é necessário que um dos lados abdique de si mesmo para estar numa relação? Algumas pessoas já me disseram que por pensar assim, eu nunca amei… e na época ficava me questionando e incomodada, como que eu nunca amei? Já amei dessa forma, mas hoje amo diferente, agora eu sei que não preciso mais abrir mão de mim mesma, não preciso e nem vou abdicar de mim mesma, ambos devem ceder, o outro estará conosco para compartilhar a vida e não roubar o nosso tempo e o nosso lugar no mundo, mas se assim não o for, e se esse for o destino, já estou com a minha melhor companhia, eu mesma, agora eu sei!


[1] Texto apresentado no 4º Sarau Poético do Salpêtrière Espaço Psicanalítico, no encerramento das atividades de 2022 desse mesmo Espaço.

[2] Psicóloga, Psicanalista Membro Fundadora do Salpêtrière Espaço Psicanalítico em Santa Maria/RS.

[3] LACAN, Jacques. Problemas Cruciais da Psicanálise (1964-1965), pg. 223. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife (2006).

[4] https://www.youtube.com/watch?v=K6XCN6gNJFw

[5] ALLOUCH, Jean. O amor Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2010.

[6] Idem.

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